Na década de 80, o então pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Arnildo Pott, queria descobrir como era o Pantanal sem a presença de bovinos, que estão lá há cerca de 250 anos.
Para isso, ele e outros pesquisadores separaram uma área do bioma e retiraram o gado. “Em um ano, cresceu um capinzal de um metro de altura. Em três anos, não sabemos como, entrou o fogo e queimou até a copa das árvores, devido o mato alto”, conta ao lembrar como cunhou a expressão “boi bombeiro”, retomada recentemente por autoridades do Governo Federal.
“Nós vimos que começou como um fogo baixo, se transformou num incêndio e a impressão que dava era de que aquilo ali (área queimada) tinha acabado, morrido pra sempre, mas antes mesmo de chegarem as chuvas, vi algumas plantas brotando”, sustenta, lembrando que palmeiras e capins se recuperaram com mais rapidez após as chuvas.
Diante dessa experiência, ele e seus colegas de pesquisa entenderam que a presença do gado mantém a vegetação baixa, o que em casos de queimada, evita que ela se alastre com rapidez e ainda, facilita o combate.
“Dali eu criei que o boi, a vaca na verdade - porque no Pantanal o que mais tem é vaca -, ajudava prevenir incêndios, assim como os bombeiros, a principal função é atuar na prevenção”, afirma.
No entanto, ele avalia que a área que hoje queima no Pantanal foi “abandonada” ao longo dos anos, justamente por ser onde o manejo de gado é mais complicado devido às cheias, que este ano, não ocorreram.
Ele explica que a vegetação que mais queimou este ano no bioma é a que permanece debaixo d’água - baceiro ou batume - durante o regime normal de cheias. Mas diante da seca histórica, essas áreas não alagaram e a vegetação secou, propiciando material “perfeito” para o alastramento do fogo.
“Essa área queimando está sem uso há pelo menos 40 anos e então essa vegetação - os baceiros - se acumulou e acabou secando com a estiagem. Ou seja, o fogo hoje no Pantanal está numa região mais baixa, que deveria ter alagado”, explica.
Dessa forma, ter ou não gado nessa região não surtiria tanto efeito para evitar as queimadas, segundo o professor, mesmo ele acreditando que haver mais gado no Pantanal ajudaria sim a conter o avanço das queimadas. “Nessas proporções teria evitado sim. Os incêndios poderiam ser contidos mais facilmente, mas o de agora (incêndio) foi um efeito dominó”, avalia.
O pesquisador diz ainda que onde há propriedades com bovinos, o mato se mantém baixo, com cerca de um palmo de altura e assim, “mesmo que o fogo entrasse, o cara (combatente) teria condições de bater (os abafadores), mas num mato de dois metros de altura, como é que faz isso?”, questiona.
Apesar disso, Pott defende que “não adianta colocar (gado) lá este ano, teria que ampliar desde o início, mas retiraram o gado de lá porque o manejo é complicado, enche muito e na primeira cheia, as cercas das propriedades acabam, por exemplo. A maior parte do Pantanal não enche tanto, ficam uns 30 cm de água, mas nas mais baixas, quem não tem condições de manejo, abandona”.
Quanto a ter mais bois no bioma, para ele é uma questão “mal interpretada”. “É só pegar os dados de rebanho do IBGE por município. Na maioria dos municípios, a concentração, a maior parte do gado aumentou na parte seca e não na alagada”.
Beira do rio - E pelas imagens de satélite e relatos do Corpo de Bombeiros e da Semagro (Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familia) é justamente área que permeia o Rio Paraguai que queima atualmente no Pantanal.
“Se as beiras de rio fossem usadas como eram… Havia horta, roças mesmo, depois não pôde mais por conta de medidas supostamente pensadas, com boa intenção, para conservação, mas que são mais um tiro no pé”, avalia, enfatizado que já visitou outros “pantanais” na Colômbia, na Venezuela e até na França onde a forma de preservação é haver hortas e lavouras às margens. “Eles plantam no brejo”.
Dados da Lasa (Laboratório Aplicações de Satélites Ambientais) mantido pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) indicam 4,1 milhões de hectares do Pantanal queimados desde janeiro, o que corresponde a 27% do bioma.
Nacional - Reportagem da BBC Brasil, que corrobora à tese de Pott, mostra especialistas dizendo que o gado criado solto ajuda, de fato, a reduzir a quantidade de matéria prima disponível para queima — mas não é a redução na pecuária - que inclusive está aumentando - que explica os incêndios deste ano.
Os dados da Pesquisa Pecuária Municipal do IBGE sobre os rebanhos bovinos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul nas últimas décadas e as informações do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) sobre os focos de calor no bioma Pantanal não indicam que haja correlação entre uma coisa e outra.
Segundo os técnicos, há pelo menos dois problemas com a teoria do "boi bombeiro".
O primeiro é que o rebanho bovino no Pantanal está crescendo nos últimos anos, ao invés de diminuir. Outra questão é que há no Pantanal uma substituição das pastagens naturais — que fazem parte do bioma — por pastagens plantadas, com espécies de capim estranhas ao ecossistema.
"Essas pastagens plantadas (com espécies exóticas) não têm a mesma dinâmica (em relação ao fogo) que as pastagens naturais. E a interface delas junto ao fogo é que pode explicar melhor o que está acontecendo lá", diz o engenheiro florestal e coordenador do projeto Mapbiomas, Tasso Azevedo.
Para o biólogo André Luiz Siqueira, que tem sido determinante para as queimadas na região é o clima — e não a criação de gado ou as áreas de preservação.
"O que existe (da parte das autoridades) é um desconhecimento completo do que se passa no Pantanal. O ciclo hidrológico é o que rege o que se passa naquele ambiente. (...) Estamos tendo eventos climáticos extremos nos últimos dois anos, que têm agravado a situação", afirma.
"Quando se tem cheias regulares ou boas, milhares de hectares são inundados e seguram durante muito tempo o fogo que é feito pelos proprietários rurais. Por não termos isso, é óbvio que se expandiu o fogo. De uma forma que não teve como segurar, porque o Pantanal estava seco", diz Siqueira, que é presidente da Ecoa, uma organização não governamental.
"Então esse é o principal ponto. Nós não tivemos o período úmido e chuvoso para fazer a queima prescrita (...). E outra: não foi feita, também, por falta de recursos (inclusive do governo federal). Então todo o trabalho de prevenção e controle começou em junho de 2020, no auge já das secas", sustenta.
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