Fugitivos da fome, do desemprego, da violência e da ditadura de Nicolás Maduro, mais de mil venezuelanos encontraram em Dourados um bom lugar para recomeçar a vida e construir um novo futuro. Esta é a primeira de uma série de reportagens sobre o tema que o Dourados News apresenta a partir de hoje.
A cidade foi a que mais recebeu refugiados no interior do Brasil. Segundo relatório da ONU (Organização das Nações Unidas), 787 venezuelanos regulares foram interiorizados para Dourados.
Esse número é referente aos registros controlados pela agência de migração da organização e não representa o quadro real de venezuelanos na cidade, já que muitos também vieram de forma independente.
Ao todo, cerca 168 mil venezuelanos cruzaram a fronteira para buscar ajuda em território brasileiro.
A meta inicial para o acolhimento em Dourados era de 400 migrantes, com garantia de emprego e assistência de moradia no primeiro mês, no entanto esse número já praticamente triplicou, segundo estimativa da associação Dunamis Multicultural -- formada por imigrantes venezuelanos que pretendem organizar a comunidade em Dourados.
Essa expansão foi confirmada pela diretoria da Cáritas, organização da igreja católica que em parceria com outras denominações, fez o acolhimento dessas famílias em Dourados, conduzidos pelo Exército Brasileiro e ONU.
Conforme Odair Laércio de Lima, membro diretor da Cáritas, acredita-se que a cidade abrigue entre mil e 1.500 pessoas. Segundo o voluntário, o que provocou a ampliação da comunidade venezuelana por aqui foram as integrações familiares.
Segundo apurado pela reportagem, muitos dos que vieram com emprego garantido acabaram não conseguindo permanecer no postos e foram demitidos. Hoje as ações voluntárias estão extremamente sobrecarregadas e já começa a existir uma preocupação com a iminência de um caos social.
Durante as integrações, famílias com 5, 10 e até 30 pessoas chegaram para serem sustentadas inicialmente por apenas um venezuelano empregado. A maior parte desses empregos são de oportunidades rejeitadas por brasileiros, com baixa remuneração e nenhuma bonificação por qualificação profissional.
E na busca por oportunidades, começam a surgir os primeiros sinais de um descontrole social. Uma das voluntárias ouvidas pelo Dourados News, relatou que recentemente uma jovem venezuelana recebeu proposta de prostituição em troca de uma vaga de emprego.
“Uma jovem muito bonita, precisando de uma oportunidade, e quando foi entregar o currículo na empresa o responsável disse que a vaga era dela caso aceitasse de relacionar sexualmente com ele”, disse a entrevistada, cuja identidade iremos preservar para evitar represálias.
Hoje, a ação assistencial que atende esses refugiados vem precisando com urgência de doações de alimentos e roupas masculinas. A situação é delicada, principalmente pelo fato de todos os dias chegarem novos venezuelanos.
A preocupação se dá também pelo fato de alguns dos que vieram empregados para Dourados, terem sido demitidos por não conseguir estabilidade nos postos de ocupação. A maioria das contratações foi efetivada por frigoríficos da cidade.
E como um alerta às administrações públicas, nas ruas da maior cidade do interior já existem refugiados em posse de cartazes clamando por ajuda. Na sexta-feira (9) o Dourados News encontrou nesta situação Graice Viscochea, 29 anos, buscando uma oportunidade de trabalho no semáforo instalado no cruzamento das avenidas Joaquim Teixeira Alves e Hayel Bon Faker.
Ele chegou a Dourados há 7 dias, é construtor e na Venezuela trabalhava como auxiliar de pedreiro. Grace chegou ao Brasil em 2016, segundo ele, “quando a crise começava”. Morou na rua em Pacaraima -- cidade no interior de Roraima, fronteira com a Venezuela -- e iniciou uma verdadeira jornada em busca de oportunidade.
“Lá em Pacaraima morei na rua. Depois fui para Boa Vista, onde fiquei na rua, dormindo na rodoviária e andando com uma enxada pedindo para capinar terreno. Continuei minha viagem e cheguei a Cuiabá, onde trabalhei por quatro meses em uma construtora. Fiquei seis meses morando na cidade. Agora eu estou aqui, buscando um emprego. Já me cadastrei em uma agência, só que o venezuelano tem que enfrentar um processo para conquistar a confiança do brasileiro. É um processo”, disse o rapaz.
Ele contou que em Boa Vista (RR), a mãe, o irmão e a namorada aguardam ele encontrar trabalho e uma casa para que vivam juntos novamente. “Para o venezuelano, R$ 1 mil é uma fortuna. Dá para comprar calça, comida, ter uma casa. Aqui no Brasil eu procuro ser um trabalhador estrangeiro, e se Deus me permitir ter o meu ‘negocinho’ (sic), ser um capitalista também e trabalhar”, finalizou.
O professor do curso de Ciências Sociais da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Marcos Antônio da Silva, doutor em estudo de integração da América Latina, considera que existe uma necessidade de contextualização do fenômeno migratório mundial.
De acordo com o especialista, é preciso ressaltar que a entrada de estrangeiros no país não é uma exclusividade do Brasil e muito menos de Dourados.
“O caso da imigração internacional contemporânea é um problema mundial. Na europa é um dos principais temas e na América Latina tivemos vários momentos em que situações de desastre natural, o exemplo do Haiti é o mais famoso deles, ou de problemas políticos, mesmo no nosso caso nos regimes militares da américa latina, que nos anos 60 e 70 expulsaram muita gente dos seus países. E atualmente problemas de ordem econômica e ordem política, como é o caso da Venezuela, que não destoa do que acontece com outros países”, pontuou.
Marcos avalia que o acolhimento do Brasil aos venezuelanos se deu por um desejo voluntário do país, sem que houvesse uma pressão de tratados mundiais. O especialista alerta para a necessidade de se observar as duas fontes de origem desses refugiados: aqueles que veem pela operação Acolhida, do Governo Federal, e os que migram de forma independente.
A operação Acolhida tem como proposta fazer a interiorização dos venezuelanos, com postos de trabalho garantidos, a fim de aliviar a sobrecarga populacional na fronteira seca entre o Brasil e a Venezuela. Marcos pontua, que muitos desses que vieram pela Acolhida possuem capacitação profissional e tem muito a contribuir para o mercado de trabalho e a economia local.
“Existe duas ondas migratórias: a aquela legal, cujos indivíduos passam pelo processo de triagem e acabam vindo para lugares já previamente combinados, muitos com emprego garantidos e que possuem muita qualificação profissional. Inclusive eu sei que existem aqui advogados, engenheiros, professores. A outra parte desse grupo, é o índice de pessoas que até entraram legalmente no Brasil, mas que fazem um processo individual, pessoal, sem ligação aos projetos de organizações”, disse. O professor acadêmico aponta que a situação de socialização e sobrevivência fica bem mais difícil para quem não vem sob a gestão dessas instituições sociais.
IMPACTOS
Questionado sobre os impactos da migração na vida do douradense, Marcos sugere que não há apenas fatores negativos a serem analisados.
“Como tudo na vida, não é só positivo ou só negativo. É preciso tomar cuidado ao passar essa mensagem para as pessoas, porque há sim impactos positivos. Quais são eles: muitas dessas pessoas são altamente qualificadas, então elas vão melhorar as condições políticas, culturais ou sociais da cidade. Além disso, há um intercâmbio cultural e esse aspecto de conhecer o que o outro come, como é a cultura do outro é importante, e eu imagino que isto já esteja acontecendo nas escolas em que as crianças venezuelanas estão estudando, e isso também é interessante para que a gente perceba que o mundo não é só Dourados”, disse.
O pesquisador considera que esses fatores acrescentam para a vida do douradense, incorporando a visão de mundo e experiência com outras culturas. “Se soubermos aproveitar, podemos crescer com tudo isso”, garante.
Sobre os efeitos analisados a uma perspectiva negativa, o principal fator elencado pelo pesquisador foi a expansão de competitividade no mercado de trabalho e também a sobrecarga dos serviços públicos como saúde, educação, assistência social e segurança.
No entanto, Marcos é otimista e diz que a médio e longo prazo esses prejuízos tendem a se resolver pela dinâmica da economia e até mesmo para pressionar os governos a promoverem a criação de políticas públicas que garantam suprimento qualificado de todas as necessidades da população, tanto aos brasileiros quanto aos venezuelanos.
“A presença venezuela pode a princípio impactar o mercado de trabalho ou o serviço público, mas a médio e longo prazo ela tende a ser positiva, porque também eles, assim como os brasileiros, devem exigir mais e melhores serviços públicos e também devemos obviamente tornar mais dinâmico o mercado de trabalho. Eles acabam também, de uma forma ou de outra melhorar a questão dos serviços das indústrias, das empresas, micro-empresas, já que nós falamos que muitos deles têm qualificação profissional. Ainda é a oportunidade para chamar atenção das autoridades para a criação de políticas públicas necessárias”, avalia.
Questionado sobre o limite da imigração diante das tão penosas demandas já enfrentadas pelos brasileiros, Marcos disse ser difícil apontar qual seja. No entanto destacou que há um limite formal e ele considera que as autoridades brasileiras tenham o discernimento desse suporte institucional.
Apesar disso, o especialista garante que o grande problema da imigração é sempre aquela que é informal.
“Na Europa a gente escuta falar disso. Nos Estados Unidos já ouvimos falar do Trump [presidente] querendo fazer o muro com o México. Se tenta fazer o controle da imigração informal, mas é impossível. Por que ela é impossível? Porque a causa dela é a desigualdade, são os problemas econômicos, políticos e sociais que os países enfrentam. Então, o limite para a imigração seria a solução da situação política e econômica venezuelana, isso que iria frear, acabar com esse fluxo imigratório. Não tendo essa solução, ele tende a continuar”, disse.
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