ilegalmente no Brasil

Como australiano procurado por pedofilia viveu ao longo dos 20 anos em que se escondeu no Brasil

Ele era professor particular de inglês e se apresentava como Daniel. Seu passaporte dizia que o nome era Daniel Marcos Philips.

Dezessete pessoas ficaram feridas no atropelamento, e um bebê de 8 meses morreu / Foto: AFP Dezessete pessoas ficaram feridas no atropelamento, e um bebê de 8 meses morreu / Foto: AFP

Nenhum dos alunos - e nem mesmo seus dois filhos adotivos - imaginavam que seu nome verdadeiro era Christopher John Gott e que o australiano era procurado em seu país natal por violar a condicional e por suspeitas de crimes sexuais.

Nos 20 anos em que viveu ilegalmente no Brasil, Gott deu aulas de inglês para executivos, foi casado e criou dois meninos carentes como se fossem seus filhos.

Ambos os garotos - hoje maiores de idade - afirmaram à Polícia Civil do Rio de Janeiro que jamais sofreram qualquer tipo de abuso do pai adotivo, que não sabiam que ele tinha outro nome e que Gott "sempre foi uma boa pessoa".

Sua verdadeira identidade foi descoberta literalmente por acidente: ele foi uma das 17 vítimas de um carro desgovernado que invadiu o calçadão da praia de Copacabana na noite de 18 de janeiro. Um bebê de 8 meses morreu na tragédia.

Atentido no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Gott entrou em coma - estado em que se encontra até hoje. A única pista sobre sua identidade era o passaporte falso. Uma investigação conjunta da Polícia Civil e do escritório da Interpol no Rio revelou que ele era na verdade procurado pela polícia da Austrália.

No hospital, Gott foi visitado várias vezes por pelo menos um dos filhos adotivos - Marcos, hoje com 28 anos. Também recebeu a visita de pelo menos um aluno.

Gott passou meses no hospital sem que a família ou os amigos desconfiassem que ele era procurado por crimes sexuais.

Nesta semana, os dois filhos descobriram a verdade sobre a vida pregressa do pai adotivo e prestaram depoimento à Polícia Civil, que investiga Gott pelo crime de falsidade ideológica e também apura se ele cometeu algum crime sexual no tempo em que viveu no Rio. Até agora a polícia não tem indícios que ele tenha abusado de crianças no Brasil.

Os dois filhos do australiano nunca foram formalmente adotados, mas, de acordo com o depoimento que deram à polícia, viveram com Gott durante anos, sendo sempre muito bem tratados e sem notar nenhum tipo de distúrbio no pai de consideração.

O mais velho, também chamado Daniel e hoje com 31 anos, disse que conheceu Gott com 14 ou 15 anos quando panfletava no centro do Rio de Janeiro. Na época, segundo o filho, o australiano tinha uma mulher, também australiana, chamada Daiana Kentish - que teria morrido em decorrência de um câncer.

Coincidência ou não, o nome falso de Gott junta os nomes dos dois garotos que ele criou no Brasil: Daniel e Marcos.

Um conhecido de Gott, que pediu para não ser identificado, disse à BBC Brasil que o australiano falava pouco sobre sua vida pessoal, mas chegou a comentar que teve uma mulher que morreu de câncer e filhos adotivos. "Ele dizia que se sensibilizava com a situação de crianças de rua e que gostava de ajudar."

De acordo com o conhecido, ele cobrava barato para um professor de inglês nativo: cerca de R$50 por hora.

Costumava dar aulas de conversação para adultos, que consistiam em encontros em ambientes públicos - como o calçadão de Copacabana - em que comentava de atualidades.

"Ele parecia normal, era simples e reservado", diz o conhecido. Gott tinha amizades com diversos grupos de alunos adultos para quem dava aula.

Em seu depoimento à polícia, o filho Daniel disse que Gott também dava aulas de inglês para executivos de empresas como a Oi e a Petrobras. O jornal australiano "The Australian" disse que Gott teria sido professor de um colégio internacional no Brasil, mas os filhos afirmaram à polícia que ele nunca deu aula para crianças.

Enquanto trabalhava nas ruas do centro do Rio, Daniel fez amizade com Gott, que o ajudava e chegou a conhecer os seus pais biológicos.

Quando os pais do garoto brigaram e a mãe dele resolveu voltar ao nordeste, onde tinha nascido, o jovem Daniel foi morar com Gott e sua mulher em Copacabana.

Segundo ele, a vida da família era normal - Daniel foi categórico ao dizer para a polícia que nunca sofreu nenhum tipo de abuso por parte do pai. Afirmou também que o australiano ajudava todo mundo que necessitava - do zelador a vendedores de praia.

O garoto morou com o casal durante 6 anos, até completar 21.

Antes de Daniel sair de casa, Gott levou outra criança para casa por cerca de um ano: Marcos, que hoje tem 28 anos e visitou o pai de consideração no hospital diversas vezes desde que o irmão contou à ele sobre o atropelamento.

Aos 11, Marcos vendia batata frita na praia, segundo seu depoimento à Polícia Civil. Enquanto trabalhava sob o sol quente do Rio de Janeiro, sempre via o casal de australianos - Gott e a mulher - passeando com o filho adotivo na orla.

Gott começou a ajudar Marcos. Dizia que ele deveria parar de trabalhar e ir para a escola. O menino começou a passar o fim de semana no apartamento do casal australiano, onde ficava brincando com seu filho.

As visitas foram se tornando tão frequentes que Marcos finalmente acabou indo morar com a família. Ficou um ano com eles, depois voltou a morar com a mãe.

Segundo o depoimento dos dois filhos à polícia, o objetivo de Gott ao levá-los para casa era permitir que parecem de trabalhar e passassem a estudar.

Hoje, Daniel é autônomo e Marcos é professor. Nenhum dos dois nunca soube da vida pregressa do pai de consideração, nem como ou por onde ele entrou no Brasil.

A família só ficou sabendo a verdadeira identidade do australiano após a tragédia em Copacabana. As notícias ruins foram vindo uma atrás da outra: ele estava em coma. Ele usava um nome falso. Era procurado pelas autoridades australianas. Era suspeito de crimes sexuais - e chegou a ser condenado a seis anos de prisão, segundo o jornal australiano The Australian.

Gravemente ferido, Gott estava com o passaporte falso quando foi levado ao hospital e entrou em coma. Consultada pelos policiais civis que investigavam o atropelamento, a Polícia Federal não encontrou nenhum registro de entrada ou saída do Brasil de alguém com essa identidade.

A PF então acionou seu escritório da Interpol no Rio de Janeiro, que confirmou com autoridades australianas que o passaporte era falso.

Os policiais iniciaram uma cruzada para descobrir quem era o homem. Como o passaporte era falso, não havia garantia de que, de fato, ele era australiano.

A Interpol sabia somente que ele falava inglês, então enviou as digitais dele para diversos países de língua inglesa.

"A partir das digitais colhidas, foi feita uma comunicação com outras agências policiais mundo afora. Tivemos algumas respostas negativas, até que finalmente a Austrália confirmou que ele era um cidadão australiano", explicou à BBC Brasil Carlos Henrique Oliveira de Souza, delegado da Polícia Federal e representante regional da Interpol no Rio de Janeiro.

As autoridades brasileiras foram então informadas que o australiano era suspeito de crimes sexuais e procurado por violar liberdade condicional - o paradeiro de Gott era desconhecido pelas autoridades da Austrália desde 2007.

De acordo com o depoimento dos filhos à Polícia Civil, no entanto, Gott vivia no Brasil pelo menos desde 2002 - ele teria adotado Daniel com 15 anos, hoje ele tem 31. O jornal de Australian diz que Gott morou 20 anos no Brasil.

Ainda segundo o The Australian, Gott chegou a ser condenado a seis anos de prisão e fugiu dois anos depois. De acordo com o periódico, havia contra ele 17 denúncias diferentes de abuso sexual de crianças, incluindo uma acusação de estupro de uma criança menor de 14 anos e o abuso de um adolescente de 16 anos.

Nascido em Melbourne, Gott trabalhou como professor de ensino médio na cidade de Darwin até 1994, segundo o periódico.

A polícia do Território do Norte da Austrália não comentou as condenações de Gott, mas confirmou à BBC Brasil que o procurava por violar sua liberdade condicional.

O órgão também afirmou que trabalha com autoridades internacionais para avaliar a possibilidade de extradição. "Devido à seu estado de saúde, vamos continuar a monitorar a situação com o objetivo de tomar uma atitude, se possível, no futuro", afirmou o órgão.

A Interpol no Rio de Janeiro tem trabalhado em cooperação com as autoridades australianas, que estão monitorando a situação de Gott.

Embora ele seja procurado pela polícia do Território do Norte, os australianos ainda não informaram o Brasil de nenhum mandado de prisão contra Gott - portanto, se ele acordasse agora, não seria preso.

A Polícia Civil tem trabalhado com a Interpol para obter informações junto à polícia australiana e está investigando a vida de Gott no Brasil.

Mais pessoas que o conheceram serão ouvidas pela polícia nos próximos dias. Se encontrar algum indício de que Gott abusou de crianças no Brasil, a corporação pode pedir à Justiça um mandado de prisão preventiva para ele ser detido assim que acordar.

No entanto, é pouco improvável que o australiano retome a consciência, segundo um funcionário do Hospital Miguel Couto que pediu para não ser identificado. A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro confirmou que ele segue em coma e que seu estado de saúde é grave.

Se a Austrália pedir a extradição de Gott, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidirá se autoriza a abertura do processo, mas seria preciso esperar a condição de saúde de Gott melhorar para que ele fosse transportado.

O Ministério da Justiça disse à BBC Brasil que não pode se manifestar sobre casos concretos, "inclusive sobre a mera existência ou não de pedido de extradição, porque poderá pôr em risco investigação em andamento".

A BBC Brasil apurou, porém, que ainda não foi feito um pedido oficial de extradição de Gott.

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