Não importa a classe social, a idade ou a religião; quando o assunto é violência contra a mulher não existe um perfil específico de vítima, nem de agressor. No cenário nacional, Mato Grosso do Sul chama atenção pelas altas taxas de crimes contra mulheres. Os números de espancamentos, feminicídios e estupros são alarmantes no Estado.
Dados divulgados pelo 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2017, apontam Mato Grosso do Sul como o primeiro em taxa percentual de estupro e o sexto com maior índice de feminicídio no Brasil.
O Estado é também o segundo com maior incidência de processos de violência doméstica contra a mulher no país, conforme divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no relatório "O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da penha". Isso mostra que o MS tem grandes desafios para reverter o quadro de violência de gênero.
Maioria dos casos de violência doméstica acontecem no interior
Cerca de 76,47% dos casos de violência doméstica acontecem no interior de Mato Grosso do Sul, porém grande parte dos municípios que compõem essa região do Estado está desassistida dos mecanismos previstos na Lei Maria da Penha como casas abrigo, defensores públicos à disposição das mulheres mais pobres, promotorias de justiça atuantes, delegacias da mulher e juizados de violência doméstica.
Apesar das dificuldades, o interior conta com algumas políticas públicas que merecem destaque. É o caso do Programa Mulher Segura desenvolvido pela Polícia Militar de Dourados, que em 2017 foi reconhecido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública como sendo uma das 10 melhores experiências de práticas inovadoras no enfrentamento à violência contra mulher do país.
Cerca de 3 mulheres são atendidas diariamente pela equipe do ‘Mulher Segura’ em Dourados. Desde a implantação o programa já atendeu mais de 200 vítimas de violência doméstica, tendo realizado mais de 300 visitas domiciliares e monitoramentos.
"Na maioria dos casos atendidos, as vítimas sofriam violência na modalidade stalking, ou seja, estava sendo perseguida e sofria sérias ameaças que colocavam em risco a sua vida. Em vários casos a atuação do programa possibilitou a prisão do autor por descumprimento da medidas protetiva de urgência", afirmou a PM Gleice Santos, uma das policias que compõem a equipe técnica.
As visitas domiciliares às vítimas são realizadas mediante de solicitação do Poder judiciário, Ministério Público ou órgãos parceiros, após a visita, é elaborado um relatório técnico que irá subsidiar a justiça.
Dados da violência contra a mulher em Dourados/MS
Uma diarista, que prefere não ter a identidade revelada, é uma das vítimas atendida pelo ‘Mulher Segura’. Ela conta o drama vivido com o ex-companheiro. "Sofri diversas vezes agressões físicas e verbais que sempre vinham acompanhadas com um pedido de desculpa. Sempre acreditei que ele mudaria, mas o comportamento só piorava a cada dia", afirmou a mãe de família.
A mulher decidiu colocar um ponto final na relação após ser ameaçada de morte. "Apontou a arma para mim, foi quando tomei coragem para sair do relacionamento", relatou a diarista.
O agressor interferia em vários aspectos da vida da mulher. "Ele me fez sair de vários empregos e descontava a raiva dele até nos animais de estimação, foi capaz de matar o meu cachorro. Além disso, começou a agredir pessoas que eu gostava, tudo para me atingir", lamentou a vítima.
A sargento Gleice dos Santos do Programa Mulher Segura, afirmou que esse foi um dos casos mais impactantes que a equipe atendeu.
Hoje, de acordo com a ONU (organização das Nações Unidas), o País tem uma das melhores legislações no combate a violência contra a mulher, porém, no Brasil Colonial a realidade era outra, é o que explica a professora de História Maria Luzinete Pereira Silva, da Escola Estadual Rodrigues Alves, em Itaporã.
"Houve uma época em que o Brasil era regido pelas Ordenações Filipinas que se aplicava a Portugal e suas colônias. Esse código legal assegurava o direito do marido matar a mulher caso a apanhasse em adultério. E se houvesse boatos e ele suspeitasse de traição também podia matá-la", afirmou.
No Brasil República, as leis continuaram reproduzindo a ideia de que o homem era superior à mulher. "O Código Civil de 1916 dava às mulheres casadas o status de ‘incapazes’. Elas só podiam assinar contratos ou trabalhar fora de casa se tivessem a autorização expressa do marido", disse a professora.
A professora ainda explica que mesmo após o Código de 1940 (vigente no País), muitos assassinos de mulheres continuavam impunes do crime, pois eram absolvidos pelo Tribunal do Júri. "Trata-se do eufemismo da legítima defesa da honra, quando alguns juristas entendiam que o marido traído deveria lavar a sua honra", pontuou.
O fato da mudança de lei ainda não foi suficiente para mudar a mentalidade machista, explica a professora. "O conceito de que o homem tem direito sobre a vida da mulher foi solidificado ao longo dos anos e persiste na memória social. Ainda há muito que se fazer na Educação para reverter esse quadro, pois a escola é o espaço onde a intervenção educativa poderá desencadear o processo de formação de uma cultura de igualdade e de respeito para a construção de uma sociedade ética e justa. Não são apenas homens que têm pensamento machista, mulheres também. A sociedade ainda é machista", pontuou.
Leis são eficazes, mas enfrentam desafios para serem totalmente efetivadas
Embora seja considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor legislação do mundo no combate a violência doméstica e de gênero, a Lei Maria da Penha, que recentemente completou 12 anos, ainda enfrenta desafios para ser totalmente efetivada.
Para a defensora pública Thais Dominato, atuante no Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos direitos da Mulher (Nudem), em Campo Grande, apesar dos desafios ainda existentes, a lei trouxe grandes avanços.
"A Lei da Maria da Penha é um grande instrumento. Ela tirou da invisibilidade a violência contra a mulher, que até pouco tempo era vista como uma conduta naturalizada, um problema de esfera privada. E a Lei mostrou que é um problema do Estado, da sociedade, pois é uma violação de Direitos Humanos", enfatizou Thais.
Entre os desafios, a defensora cita que o Estado precisa criar diversos instrumentos para tirar a mulher do ciclo de violência, que não termina com a punição do agressor. "Não é só punir o agressor. A Lei Maria da Penha sinaliza que o Estado crie políticas públicas para encorajá-las a denunciar e depois protege-las".
"Essa história de que mulher gosta de apanhar é um absurdo. Não é tão simples para as vítimas denunciarem, os estudos mostram que elas ficam presas no ciclo da violência entre 9 e 10 anos até conseguir sair, e isso por diversos motivos como medo, vergonha, dependência financeira e afetiva, por acreditar que a pessoa vai mudar", afirmou a defensora.
Outro desafio citado por Thaís é a atuação com perspectiva de gênero por parte dos operadores do Direito, e isso envolve toda a classe jurídica desde advogados até juízes. "Nos casos de morte violenta contra as mulheres é preciso, desde a investigação, tratar com perspectiva de gênero. Muitas mulheres morrem com facadas nas partes Íntimas (seios e órgãos genitais), tem rostos desfigurados, isso são evidências claras do ódio por gênero que não podem ser desprezadas", afirmou.
A defensora também enfatizou a importância das vítimas terem defesas atuantes durante as audiências, para impedir questões que denigram a imagem da mulher e reforcem estereótipos. "Não podemos admitir mais, que certos fatores sejam vistos como justificativas para a agressão. Dizer ou mostrar indícios de que ela traiu, por exemplo, não podem ser motivos para absolvição", frisou Thais.
Outro grande desafio citado pela defensora diz respeito à cultura e comportamento da sociedade. "Os meninos ainda são criados com a mentalidade de serem donos das mulheres, acreditando que elas são suas propriedades. A Lei é recente, o machismo, por sua vez, é muito antigo e está enraizado. Daí a importância do tema ser abordado dentro das salas de aula, para que através da educação, haja a mudança de cultura", explicou.
Ela também citou que a sociedade ainda não entendeu que há uma desigualdade de gênero. "Ainda acham que não é necessária uma Lei como a Maria da Penha porque mulheres e homens estão no mesmo patamar, e não é assim. A gente vê os dados que apontam a verdadeira realidade", destacou.
A defensora acredita que a lei deve ser mais divulgada. "Uma pesquisa do DataSenado apontou que 100% das entrevistadas conhecem a Lei Maria da Penha, porém 70% disseram conhecer pouco, ou seja, não sabem de todos os seus direitos. E a informação é um agente transformador", concluiu Thais.
Feminicídio, o ápice da violência contra a mulher
Quando uma mulher é vítima de feminicídio possivelmente ela já sofreu todas as outras formas de violência, é o que explica a Defensora Thaís. "O feminicídio é o ápice da violência. Costumamos dizer que é uma morte evitável, pois já dá sinais desde o início, vem precedido das ameaças, das agressões".
A defensora explica que, da mesma forma que não existe um perfil de vítima, já que as agressões independem de classe social, raça ou religião, também não existe um perfil específico de agressor, por isso é necessário ficar atento ao comportamento.
"Tudo começa numa simples ameaça, que a gente despreza. Se ele exige o compartilhamento de senhas de redes sociais, controla o comportamento e as roupas da mulher, não deixa ela visitar amigos e famílias, o relacionamento é abusivo e poderá culminar em violência", alertou Thais.
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