Integrantes da irmandade contam sobre como dividem suas trajetórias com a história do grupo
Enquanto Antônio* chegou ao A.A (Alcoólicos Anônimos) em uma “arapuca” criada pelo sogro, João* conheceu a irmandade quando já não sabia mais o que fazer e resolveu ouvir os conselhos de um padre. Comemorando os 50 anos de história do Alcoólicos Anônimos em Mato Grosso do Sul, os dois integrantes resumem que, enquanto o preconceito existe até hoje, a irmandade continua sendo a última gota de esperança para muita gente.
“Chegou um momento em que eu ficava sabendo das festas de aniversário dos meus familiares só uma semana depois de já ter acontecido. Ninguém me chamava porque, primeiro, eu já ia chegar bêbado e, segundo, ia dar dor de cabeça para quem estava lá”. É assim que João, hoje com 60 anos, se lembra da sua vida até os 35.
Durante a metade do tempo de existência do A.A em Campo Grande, ele dividiu suas histórias e conta que, assim como para outras pessoas, foi a primeira tentativa real para começar a descobrir sua doença. “Eu cheguei aqui completamente desacreditado. Já tinha perdido minha família, emprego, fiquei em uma situação desesperadora”.
Na época, João não foi convencido a participar das reuniões por familiares ou alguém que era integrante da irmandade, mas sim no lugar em que se espera por milagres. “Eu estava me confessando com um padre e, em determinado momento, ele me perguntou o motivo de eu não frequentar grupos de apoio como o A.A”, explica.
Longe do processo de aceitação ter sido rápido, João demorou meses até acreditar que realmente o conselho do padre era para ele.
Eu era evitado no serviço, ninguém me queria por perto. Fui demitido de um emprego de quase 15 anos de carteira assinada e ter essa doença envolve algo muito complicado, que é o orgulho. Você não aceita a derrota, continua querendo dizer que está pagando a bebida porque o dinheiro é seu, porque você quer, conta João.
Aos poucos, ele passou a se perceber como integrante da irmandade e, explicando que não há resultados da noite para o dia, conta que mesmo após 25 anos de reuniões, entende que precisa continuar frequentando.
“Eu percebi que tinha uma saída e fui retomando o curso da minha vida porque eu vivia na contra-mão. E a gente vai percebendo isso em singelas reuniões. Minhas derrotas foram inúmeras, mas não me tornei um derrotado e continuo pensando assim até hoje”, comenta João.
Seja pela dor de não ser desejado na família, pelo desespero de não ter emprego para manter as contas em dia ou pelo conjunto de se perder na própria vida, ele completa que não ignora o passado e, consequentemente, sua doença. “Eu sei do meu diagnóstico, que não foi dado pelo A.A, sei que preciso de ajuda e que isso é pelo resto da minha vida. Hoje eu tenho uma família, me aproximei dos meus filhos e sei que se eu tivesse continuado daquele jeito, nada disso seria possível”.
Quase tão antigo quanto o A.A
Assim como João, não há uma semana em que Antônio falte nas reuniões do A.A e, longe de ser membro novo, ele divide sua história com a da irmandade. “Eu cheguei no A.A no dia 20 de janeiro de 1979, nessa época o A.A já estava vivo há 7 anos. Ou seja, já são 43 anos participando”.
Durante todo esse tempo, ele viu sua própria narrativa sendo recontada de boca em boca e, assim como naquela época imaginava que o A.A era um dos piores lugares, garante que hoje o preconceito continua existindo na mente de outros. “A pior coisa que você pode dizer para um alcoólatra é que ele precisa procurar o Alcoólicos Anônimos. Na mesma hora ele já vai começar a negar”.
Relembrando como foi aquele dia 20 de janeiro, Antônio detalha que só chegou ao A.A porque foi “enganado” pelo sogro.
“Sabendo da minha rebeldia, ele pediu que eu viesse trazer o irmão dele, que realmente precisava e era meu colega, então trouxe e fiquei aqui. Cheguei enganado mesmo e, quando já estava na reunião, comecei a entender o convite. Vi que eu tinha entrado numa arapuca muito bem pensada, mas hoje sei que foi Deus quem enviou meu sogro, que ele foi um mensageiro”, diz Antônio.
Hoje, garantindo que conseguiu se recuperar com a ajuda da irmandade, o aposentado diz que os momentos iniciais foram tão difíceis que demorou meses até decidir se afastar do álcool. “Eu cheguei só por vir, não para ficar, mas acabei ficando. Cada um que vinha aqui falava um pouco de mim e eu ficava pensando que aquelas pessoas não me conheciam, mas ainda assim sabiam muito da minha vida”.
Voltando à sua juventude, ele narra que antes de ser indesejado pela família, ignorado no serviço e por si mesmo, a história começou parecendo feliz. Vindo da área rural, Antônio comenta que chegou a Campo Grande sem saber se socializar e foi com o empurrão de rum com guaraná que a narrativa mudou.
“Antes eu bebia muito raramente, mas o mundo mudou a partir daquela hora. Eu não sabia que o alcoolismo, para algumas pessoas como para mim, é progressivo. Bebi por oito anos pensando que eu mandava no álcool, mas depois isso mudou. Foram mais ou menos 25 anos na ativa perdendo responsabilidade, bom senso, me destruindo na família, no trabalho”, Antônio conta.
E, durante todo o processo de passos a serem seguidos, ele destaca que o anonimato é uma das partes mais importantes. “De 10 pessoas que você conta, se tiver sorte uma vai te parabenizar por estar no A.A. As pessoas dizem que você não precisa das reuniões, que é exagero ou que não é seu lugar. Então destaco que o anonimato é muito importante”.
Como o integrante detalha, todas as reuniões do A.A são anônimas e, como ele vê, impulsionam que cada pessoa dentro das sala consiga continuar participando. Isso porque, como ele diz, todos são bem-vindos a qualquer momento e em qualquer situação.
Al-Anon, ajuda para família e amigos
Também completando 50 anos de criação em Mato Grosso do Sul, o grupo Al-Anon é um programa destinado para os familiares e amigos de alcoólicos. Confirmando tudo o que João e Antônio relataram em relação à família, quem participa do outro grupo narra a necessidade de não apenas o alcoólatra buscar ajuda, mas também quem está próximo.
Há 36 anos integrando o Al-Anon, Maria* chegou ao grupo sem nem saber de sua existência. No dia 6 de agosto de 1986, ele entrou na sala do Alcoólicos Anônimos com o então marido e, no meio do caminho, descobriu que havia um espaço específico para contar como ela se sentia.
Eu tinha decidido que iria me separar, então ele me convidou para o A.A como uma forma de buscar ajuda. Já faziam 15 anos que não saía de casa de noite porque tinha medo da escuridão, dava 18h e eu fechava as portas, relembra Maria.
Mesmo com medo, ela foi para a reunião e, naquele dia, percebeu que precisava de ajuda. “Eu cheguei sem fé, sem acreditar em Deus. Pensava que se Deus existisse, eu não iria sofrer tanto”.
Hoje entendendo aquele medo da escuridão como uma associação entre a noite e o alcoolismo, Maria explica que viver ao lado do marido doente fez com que ela sentisse vergonha de si mesma e alterasse todo o modo de vida até de suas filhas.
“Eu não deixava minhas filhas brincarem ou fazer qualquer outra coisa, colocava elas em todas as atividades e cursos possíveis. Isso porque eu achava que tinha me casado com um bêbado porque eu não tive estudo”, conta Maria.
Durante as reuniões do Al-Anon, que também são anônimas, ela percebeu que precisava aceitar que não poderia salvar ninguém e que na sua própria vida teria de fazer escolhas. “Comecei a seguir o programa e, enquanto isso, meu marido desistiu do A.A. Ele acabou morrendo quatro anos depois, nunca abandonei ele, mas ele fez escolhas e eu continuei. Mesmo depois que ele faleceu eu segui vindo para as reuniões”.
Para ela, ter encontrado um grupo de apoio foi o que faz com que toda sua vida mudasse. Até porque segundo suas palavras, os pensamentos sobre o marido eram tão intensos que as únicas reflexões que vinham sozinhas eram as de culpa.
Assim como Maria, Joana* também chegou ao Al-Anon quando já estava imersa em sentimentos que ela já nem entendia. “Eu perdi o controle da minha vida pela codependência que eu tinha com meu ex-marido. Fui me sentindo culpada pela bebida dele, pelas situações, e fui me perdendo”.
Enquanto a colega de irmandade chegou ao grupo sem querer, Joana foi convidada por Maria. Ela conta que em uma tarde, as duas passaram horas conversando sobre aqueles sentimentos e, acreditando que realmente precisava de ajuda, aceitou o convite.
Eu estava no fundo do poço emocional, não sabia o que fazer com a vida a não ser rezar. Caí em uma depressão, fui me perdendo dentro da minha própria casa e teve dias em que nem tomar banho eu tomava, destaca Joana.
Detalhando que, enquanto ela conseguiu apoio com o grupo, o então marido não aceitou que também precisava de ajuda. E, mesmo sem ele, decidiu que seguiria frequentando as reuniões.
Joana explica que não há fórmula secreta, mas que conversar e seguir os passos para a recuperação fez com que ela se entendesse e percebesse que queria uma vida diferente.
Conheça o A.A e o Al-Anon
Nesta semana, o Grupo de A.A São Paulo e o Al-Anon, os primeiros do Estado, completam 50 anos de existência. Para comemorar, uma reunião especial será realizada no Salão Paroquial da Igreja São Francisco, localizada na Rua 14 de Julho, 4213, às 20h de amanhã (24).
No mesmo endereço, as reuniões gerais também são realizadas semanalmente e são abertas para todos. Enquanto o A.A é realizado às segundas, quartas e sextas-feiras, às 19h30min, o Al-Anon conta com reuniões às segundas e quartas no mesmo horário. Além dos dois, também existem grupos para os filhos de alcoólicos, com reunião às quartas-feiras, também às 19h30min.
Além do grupo São Paulo, as irmandades possuem reuniões em todas as regiões da cidade. Para mais informações é possível entrar em contato pelos números (67) 3383-1854 e (67) 99606 8215.
(*) Os nomes usados são fictícios devido ao anonimato do A.A.
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