Brasil

Pelo fim da pandemia, e pela volta dos abraços

"Abracilda", Marta escreve este texto misturando poesia, música e filme para fazer refletir sobre a ausência dos abraços

Foto: Henrique Kawaminami. Foto: Henrique Kawaminami.

Nunca antes imaginei essa cena. Minha mãe me negar abraço. Logo para a mais "abracilda" no meu círculo de convívio. Aquela dona do "abraço fofo", também definido como "macio".

Mas aconteceu. Mesmo depois de cumprir o protocolo de desinfecção na chegada em casa do trabalho: sapatos e roupas tirados na lavanderia, banho tomado da cabeça aos pés.

Ainda que tenha sido um pedido de brincadeira. "Mãe, queria tanto te dar um abraço". Ela: "nããão", arqueando o corpo para trás e rindo, num tom meio engraçado, meio sério.

É assim, nos dias de pandemia! O abraço inevitável tem sido o do luto, do qual estamos tentando escapar.

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio, porque este não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.

Depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”

Poesia de Carlos Drummond de Andrade.

Tenho pensado e ouvido muito sobre o quanto sinto falta de abraçar, de afofar as pessoas, até as nem tão próximas. Nem todo mundo sente, mas eu sim e os próximos sabem disso.

Cá está uma das mais adeptas da abraçoterapia.

Distribuir amplexos, o outro nome do dicionário, é bem coisa de Marta.

Pois não lembro mais do último ganhador desse carinho. Não me recordo de quem recebi. Ou quem retribuiu. Porque é assim: tem abraço que vai e vem. Tem aquele que vem e não vai, ou o contrário.

Pode ter sido dessas pessoas reativas ao contato físico gratuito, que negaceia e tenta fugir, e às vezes acaba cedendo.  Talvez tenha sido em alguém "grudento", capaz de devolver o gesto até com mais apego. E, claro, existe a chance de ter ocorrido só o abraço-protocolo, para não fazer feio.

Poema feito pelo escritor moçambicano Mia Couto, quando o sul-mato-grossense Manoel de Barros morreu, em 2014.

Até do aperto trocado sem muito ânimo, começo a ter saudades. Porque faz bem, alivia num momento de tensão e, quando nada mais ajuda ou resolve, solta as lágrimas da raiva ou de tristeza. Acalanta, conforta. Revigora. Mata saudades. Cria sentimento.

É troca de energia. Pura e simples. Há uma amiga, também abracilda, capaz de ampliar o afeto. Ela mistura muxoxo verbal, um demorado hummmmm, e a cena fica engraçada. Gosto. Arranca, também, sorriso.

A vida está mais difícil, né?. Tem de ficar em casa, quando dá, tem de lavar as mãos, sempre que dá. Tem medo de gente, pois o agente minúsculo pode estar no meio da conversa, contaminador. Pequenino, mas poderoso, pandêmico, mundial.

Faz a gente ter medo de gente. Faz ficar sem abraçar.  A intenção está quebrada ao meio. Sem prazo para concretizar.
 

O Abraço Partido, filme argentino de 2004


Covid 19, Sars-Cov2, novo coronavírus, corona, coronga. O nome não importa. Como quase tudo na vida, é o significado a grande diferença.

O vírus que "veio do nada", lá do outro lado do mundo, é invisível, silencioso, insidioso. E está nos roubando muito, nos levando momentos caros.

O micróbio furta a saúde, furta vidas. Nos afana, imperceptivelmente, coisas cuja grandeza  economista nenhum explica, cientista nenhum decifra. Impede a demonstração de afeição para muitos em descrédito, e que a proibição em nome da vida faz dar valor. Quero de novo, sem censura e com esse fantasma em forma de vírus longe de nós.

Bichinho feio, devolva meus abraços. E, junto, um mundo de mais amor.

 

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