Você sabia que a resistência a quedas é apenas a 12ª colocada entre as características levadas em conta pelo brasileiro na hora de comprar um smartphone novo, de acordo com pesquisa da consultoria IDC? Porém, em levantamento feito pelo G1 com assistências técnicas, os consertos de telas quebradas representam 80% dos serviços feitos.
Isso já aconteceu com você, o que é provável num país com vendas trimestrais de 12,4 milhões de celulares, ou você deve ter percebido o tanto de gente, seja na rua, no ônibus ou no trabalho, que usa ou teve um smartphone com display trincado.
Por isso, o G1 procurou especialistas, assistências, consumidores, fabricantes e advogados para tentar entender essa "quebrada":
Por que existem tantas telas quebradas por aí? Quais são os direitos do consumidor? E o que é feito com as peças descartadas?
Não vale a pena consertar
Reparar um display trincado, ainda mais de um modelo caro, não é fácil no Brasil. O conserto de aparelhos como iPhone 7, Galaxy S8 ou Moto Z2 pode ir de R$ 700 a R$ 1.800.
O empresário Felipe Hevia, dono de um Samsung Galaxy S8 Plus com a tela quebrada, pensou em continuar com o aparelho. Mas mudou de ideia quando o trincado aumentou e afetou o uso da câmera frontal. Resultado: gastou R$ 1,2 mil no reparo. O Galaxy S8 Plus custa R$ 4,4 mil.
Outros dependem do smartphone para trabalhar ou não tem um celular reserva enquanto o titular, às vezes por dias, se recupera de uma lesão.
"Perguntei se me cederiam um aparelho reserva durante o período, que foi um dos argumentos usados no momento da venda, mas me falaram que depende de disponibilidade", diz o ilustrador Felipe Rodrigues, outro dono de um Galaxy S8 com tela quebrada.
"O celular é minha ferramenta de trabalho, mas não vale o empenho. E vou ficar muito bravo se não tiver conserto pela perda de tempo ou por não topar pagar. Daqui uns meses ele já vai estar mais barato. Se a tela me irritar, compro outro. É uma mistura de sentimentos. Raiva de mim por ter derrubado e raiva do celular por ser tão frágil", lamenta Rodrigues.
US$ 14,4 bilhões: foi isso que o consumidor gastou nos 10 anos do iPhone reparando ou trocando aparelhos, segundo pesquisa feita por seguradora nos EUA.
Desses, 26% aplicaram película e 35% usaram capa protetora. Mas 49% do total ainda tiveram as telas destruídas em queda ou acidente.
Pequenos notáveis
Mas por que os smartphones têm ficado tão frágeis? E por que é tão caro consertá-los? Há dois motivos principais, de acordo com Renato Franzin, pesquisador do Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
Primeiro: hoje, os celulares são "uma coisa só". Se uma peça quebrou ou deu defeito, há grandes chances de você ter que trocar outras junto. E aí o valor aumenta.
"Há dois anos, você tinha o vidro, o sensor 'touch' sobre a tela de LED ou LCD e depois uma placa eletrônica com todos os circuitos do aparelho. Mas a tendência hoje é cada vez mais usar o próprio display do celular para instalar todos os componentes", diz Franzin.
"Isso traz uma série de facilidades, pois condensa todo o celular em uma peça única e economiza espaço. Então ele comporta uma bateria maior, fica menor e mais fino. Mas quando você derruba e quebra o vidro, você acaba quebrando tudo", afirma o especialista.
Segundo: o vidro é um bom isolante. Afinal, o principal material dos componentes eletrônicos vem da areia, mesma fonte do vidro. Mas ainda não há um equilíbrio entre tamanho e resistência capaz de suportar a todas as quedas.
"O desenvolvimento de vidros para smartphones evoluiu a uma velocidade bastante grande. No caso do iPhone 6, por exemplo, a principal causa de quebra não era a fragilidade do vidro, mas da moldura de alumínio", conta Franzin.
"Fato é: durante bastante tempo isso ainda será passível de acontecer. Mas há duas formas de ver. Como fabricante, você assume e dá ao consumidor uma solução competente e acessível em termos de valor. Ou você ignora. Porque vai quebrar. O problema é o que você irá fazer depois", diz Franzin.
Mercado de ouro
A tela quebrada costuma dar dor de cabeça principalmente a donos de celulares novos. A garantia das fabricantes não costuma contemplar danos ao display e, em casos como esse, elas geralmente dizem que houve "mau uso do usuário". Logo, não são obrigadas a fornecer cobertura.
De acordo com Pablo Linhares, fundador da rede de assistências técnicas PLL, com lojas em São Paulo, Rio e Salvador, a maior média de reparos de tela é entre aparelhos que ainda estão na garantia. "70% a 80% dos smartphones que entram para conserto estão no primeiro ano de uso, ainda são novos".
20 mil: esse é o número de telas trocadas por mês na rede PLL. O serviço custa, em média, R$ 400.
No caso do Rei do iPhone, loja do Centro de São Paulo que bombou no Facebook em 2016 após a postagem satisfeita de um consumidor, os produtos fora de garantia são a principal matéria-prima. "Eu atendo muito aparelhos de uma ou duas gerações atrás. Quando começamos em 2013, era o iPhone 4. Agora, chega muito o 6 e o 6s", diz o proprietário Wissam Atie.
E bota matéria-prima nisso. São 32 funcionários que, segundo Wissam, atendem diariamente, em média, 150 clientes com telas quebradas. A procura de donos desesperados com seus iPhones debilitados é tamanha que o empresário expandiu de um guichê na Rua Santa Ifigênia para um conjunto de "boxes" em outra galeria próxima.
Já a loja King Manutenções, em São José dos Campos (SP), se especializou em consertar as belas (e frágeis) telas curvilíneas do Galaxy S7 Edge, da Samsung. São cerca de 60 unidades do modelo reparadas todo mês, vindas de todas as regiões do Brasil. A empresa conversa com os clientes usando sua página no Facebook e posta alguns dos consertos em vídeos no YouTube.
Em breve, Wissam deve abrir uma nova unidade do Rei do iPhone na própria Santa Ifigênia com dimensões dignas de uma recepção de laboratório de exames, com mais de 15 guichês de atendimento, poltronas acolchoadas, padaria e carrossel com venda de acessórios para o smartphone da Apple. Tudo isso para consertar celular.
"A gente quer fazer um Vale do Silício dentro da Santa Ifigênia. Atendimento adequado, nota fiscal e preços justos no comércio popular. Hoje em dia, a melhor coisa que você pode ter é um amigo que conserta celular", brinca o empresário.
731,4 kg: esse é o peso dos celulares recebidos em 2016 pela Coopermiti, cooperativa de São Paulo de reciclagem de lixo eletrônico. A empresa desmonta os equipamentos e os destina para reciclagem e tratamento. Alguns resíduos são exportados para o Japão.
Seus direitos
Provar que o produto de gigantes como Apple e Samsung têm um defeito estrutural pode ser uma tarefa dura para o cidadão comum. No caso de telas quebradas, ainda mais pela falta de garantia de fábrica.
"A quebra de telas normalmente antecede o mau uso porque, para quebrar, o consumidor deixou cair o produto. Então é difícil levar essa responsabilidade para a fabricante. Não há cláusula para esse tipo de problema nas garantias", diz Claudia Almeida, advogada do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
"Se você compra um carro, os vidros têm garantia de quebra de 3 meses. Depois, o problema é seu. Essa é uma opção que a fabricante de carros deu. Mas isso não acontece com as fabricantes de smartphones", diz Almeida.
Mas há formas de o consumidor tentar buscar um ressarcimento na Justiça em caso de defeitos de celulares. Uma delas é a inversão do ônus da prova, segundo Francisco Tadeu Souza, advogado e professor de Direito Civil. O recurso pode ser aplicado em casos de relações de consumo, como a compra e venda de smartphones. Ou seja, não é o cliente que precisa provar que há defeito no aparelho, mas é a fabricante que deve garantir que houve mau uso por parte do usuário.
"A tecnologia não para de avançar e em curtos espaços de tempo são lançados aparelhos com mais e mais funcionalidades. Certamente, o dia a dia não oferece oportunidades para que o proprietário do smartphone explore ou experimente todos os atributos e funcionalidades prometidos. Dessa forma, apenas o uso ocasional (ou intenso e prolongado) pode demonstrar se o aparelho entrega o que promete", diz Tadeu.
A advogada do Idec, no entanto, ressalta que é importante mesmo em casos de inversão do ônus da prova que o consumidor tenha um laudo próprio que conteste a análise da fabricante sobre o mau uso. Como proceder em caso de problemas com seu smartphone:
Entrar em contato com a fabricante ou fornecedora do aparelho, idealmente de forma escrita, e apontar o problema;
Caso não haja solução e o produto ainda esteja na garantia, é possível acessar o Procon e fazer uma reclamação online na página www.consumidor.gov.br;
Se o caso ainda não for resolvido num período de 30 dias, procurar o Juizado Especial cível mais próximo;
É preciso apresentar documentos pessoais, nota fiscal da compra do produto e o comprovante de aviso ao fabricante do defeito.
O que dizem as empresas
O G1 procurou as fabricantes de celular mais populares no Brasil para saber quais são os testes de resistência feitos em seus smartphones mais caros, como eles acontecem e qual é a resistência à altura e pressão de cada um deles.
A Samsung afirmou que "o Galaxy S8 e o S8+ possuem o Corning Gorilla Glass 5 na parte frontal e traseira para maior durabilidade. O Gorilla Glass 5 fornece até 1,5 vezes melhor desempenho do que as gerações anteriores. Ambos os dispositivos têm um corpo de alumínio projetado para protegê-los de impacto externo.
E, como todos os nossos produtos, o Galaxy S8 e o S8+ passaram por testes rigorosos considerando cenários de uso da vida real".
Já a Motorola disse que "ao desenvolvermos o Moto Z2 Play, utilizamos um tipo de vidro mais resistente que o normal para diminuir a chance de quebra da tela. A Motorola também realiza uma série de testes em seus laboratórios de qualidade para simular as condições de uso dos aparelhos dos usuários no dia a dia. As simulações incluem quedas, resistência a variação de temperaturas (calor/frio) e aceleração do ciclo de vida do produto".
A Apple ainda não enviou suas respostas. Essa reportagem será atualizada assim que isso acontecer.
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