Para a relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada, o colapso do prédio de 24 andares, ocupado por 150 famílias após quase duas décadas de abandono, mostra que "a relação entre a falta de moradia e a morte é muito próxima". "É isso o que tiramos deste episódio: quando governos em nível federal e local fracassam em implementar o direito de moradia, grandes tragédias e mortes acontecem."
As Nações Unidas classificam a moradia como um direito universal e cobram de países para que garantam esta prerrogativa a todos os seus cidadãos. Mas, para a especialista, que roda o mundo fiscalizando se nações cumprem ou não a regra, o debate não deve ser reduzido a "habitação popular versus mercado".
Citando exemplos de parcerias bem-sucedidas entre governos e empresários na Índia, Farha defende regulação sobre construtoras ("há muita corrupção e no Brasil isso é especialmente grande") e limites de lucros em determinadas áreas ("e que o excedente seja destinado a fundos ou verbas destinadas à construção de casas").
Sobre a polêmica da cobrança de supostas mensalidades de até R$ 400 aos sem-teto, classifica a ideia como "interessante", mas diz que ela só funciona se houver mecanismos de prestações de contas transparentes por movimentos de moradia e fiscalização.
"A maioria das pessoas quer sentir que está pagando pelo que tem, que não está recebendo de graça", avalia. A discussão, ela alerta, também vale para os proprietários e inquilinos tradicionais. "Vários proprietários de apartamentos cobram aluguéis caros, mas oferecem espeluncas aos inquilinos, a quem muitas vezes não resta alternativa."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - O que deveríamos aprender após uma tragédia como essa?
Leilani Farha - Primeiro, fiquei profundamente entristecida com esta tragédia. Mas não vou dizer que fiquei chocada ou surpresa. Quando não se garante acesso a moradia adequada para todos, as pessoas vão acabar encontrando um lugar para morar, de um jeito ou de outro. O que mais eles podem fazer? É claro que eles vão entrar em prédios abandonados. Isso é melhor que viver na rua.
Mas, claro, se o prédio está abandonado, ele não está em boas condições. E o risco de incêndio é gigante. Este é o risco número 1. Há outros: se não há água e saneamento, há riscos ligados à saúde. Mas se não houver um sistema de gás encanado, se não houver cozinhas equipadas, as pessoas farão fogo nestes lugares por necessidade e improviso. Ou vão acender um cigarro e adormecer de cansaço.
A relação entre a falta de moradia e a morte - ou a vida, se preferir - é muito próxima. Estas pessoas vivem no limite entre vida e morte. É isso o que tiramos deste episódio: quando governos em nível federal e local fracassam em implementar o direito de moradia, grandes tragédias e mortes acontecem. Se os governos continuarem falhando, isso se repetirá. Isso é muito grave e não pode ser encarado sem seriedade. São justamente estas as questões mais urgentes que vemos hoje nas cidades.
BBC Brasil - No Brasil, quem defende as ocupações normalmente cita a Constituição, que diz que qualquer propriedade deve cumprir sua função social (abrigar alguém), ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que determina o acesso a à moradia como direito fundamental. Mas quem critica as ocupações também cita a Constituição, que classifica a propriedade privada como direito fundamental, e o Direito internacional, que trata a propriedade como um bem inalienável. Quem está certo e como se pode resolver este aparente paradoxo?
Leilani Farha - Defender os direitos humanos não significa dizer que moradias populares são mais importantes ou melhores que a propriedade privada. Os direitos humanos não dizem: 'não às propriedades particulares'. Claro que não. O que eles dizem é: 'independente de como as moradias são disponibilizadas, seja por meios públicos ou privados, elas precisam atender a alguns padrões'.
Então, se um governo decide que o setor privado deve ser responsável pela construção de casas - e os governos têm todo o direito de fazer isso! -, ele também precisa garantir que o mercado obedeça a padrões e regras humanitárias internacionais. Todos, sem exceção, têm direito a moradia e isso precisa ser obedecido. E aí está o problema, geralmente. O debate não é moradia popular versus mercado. A discussão deve ser: independentemente de quem está construindo as casas e regulando sistemas de moradia, todos os atores do processo tem que cumprir a lei.
BBC Brasil - Muitos movimentos de moradia que organizam as ocupações costumam cobrar taxas mensais que variam entre R$ 200 e 400 das famílias abrigadas em prédios abandonados. Os grupos alegam que o dinheiro é usado para consertos, limpeza, segurança e infraestrutura. Mas muita gente vem criticando estes pagamentos, agora que o prédio caiu, porque avalia que se trata de uma espécie de aluguel cobrado por quem não tem direito sobre o imóvel. Como você vê esta prática?
Leilani Farha - Isso é muito, muito interessante, eu não sabia disso. Acho que a maioria das pessoas aceita pagar algo pela moradia. É esta a minha experiência. A maioria quer sentir que está pagando pelo que tem, que não está recebendo isso de graça, e gosta especialmente de ser cobrado por um valor que é capaz de pagar. Então, a ideia de uma taxa para os sem-teto para garantir que eles tenham de fato uma estrutura de alguma forma adequada me parece uma ideia legal.
Mas, claro, é preciso garantir que o que as pessoas estão pagando seja de fato investido na moradia. Isso não vale só para a situação que você menciona. Vários proprietários de apartamentos cobram aluguéis muito, muito caros, mas oferecem espeluncas aos inquilinos, a quem muitas vezes não resta alternativa. A questão nesses casos é: o valor tem que ser todo revertido em lucro para o locatário, ou deve ser reinvestido de alguma forma no imóvel?
Neste caso de São Paulo, eu não sei o que estava acontecendo com este dinheiro, como o dinheiro estava sendo investido para manter o prédio, quais garantias eram oferecidas aos moradores, nem quais regras eram impostas eles. Então, não posso dizer que isso era um mau uso de recursos ou um bom uso. O que digo é que, a princípio, é uma ideia interessante, mas que precisa ser gerida corretamente.
A parte complicada é: como garantir que os movimentos de moradia de sem-teto prestarão contas de forma transparente? Prestação de contas é algo chave nos direitos humanos. Se você me perguntar por que eu gosto da perspectiva dos direitos humanos na moradia, uma das minhas respostas sempre será: porque fica claro quem presta contas a quem, que governos devem ser transparentes com as pessoas.
BBC Brasil - A senhora vê diferenças nas demandas por moradia popular nos países em desenvolvimento e nos países desenvolvidos?
Leilani Farha - Sim, eu vejo. Uma coisa interessante que está acontecendo no hemisfério Sul e na América Latina, particularmente, é a ideia de que o governo pode apoiar pessoas a construírem suas próprias moradias (com financiamento de materiais de construção para reformas, expansões ou compra de terrenos, por exemplo). Isso já é bem grande no México e em outros lugares. Geralmente, no Sul, as pessoas são mais simpáticas a ideia de construírem ou expandirem suas próprias casas gradualmente, no ritmo em que podem pagar. Nós não temos nada deste tipo no hemisfério Norte. Esta construção seria ilegal na maioria dos lugares, porque há muitas restrições sobre quem pode construir e como, e estas obras seriam demolidas em pouco tempo. Os dois lados são totalmente diferentes nesse sentido. Já em termos de governos e sua postura em relação a moradias populares, acho que países desenvolvidos e em desenvolvimento são muito semelhantes.
BBC Brasil - Como?
Leilani Farha - A maioria dos governos vem recuando, ou porque seguiram recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou de bancos regionais, que dizem que eles deveriam reduzir programas sociais, ou porque implementam medidas de austeridade, que afetam principalmente os pobres. Nos dois casos, caem os investimentos em moradia popular. Você vê isso nos EUA, na Europa ocidental, isso é global.
Mas estou começando a ver os governos dizendo: "Opa, talvez a única saída aqui, em meio a essa crise enorme e global, com falta de moradia acessível e uma explosão de sem-tetos, seja voltar à construção de moradias". O Reino Unido tradicionalmente é muito bom em construir moradias populares e os vejo discutindo se vão retomar este caminho.
Quando você vê países como este fazendo esse tipo de movimento, é um bom sinal. Há ao menos uma reflexão acontecendo. Mas não estou vendo uma movimentação suficiente para me sentir tranquila. Os governos precisam se dar conta da enorme tarefa que têm pela frente para cumprir as leis internacionais.
BBC Brasil - Esta discussão pode soar utópica para muitos. Pode citar exemplos bem sucedidos em que mercado, investidores e governos trabalharam juntos para a construção de moradia acessível?
Leilani Farha - É difícil dar um exemplo específico que eu possa passar a frente como um modelo com estes diferentes personagens e interesses trabalhando juntos. Eu vi, quando fui a Índia, parcerias publico-privadas (PPPs) que pareciam estar funcionando bem de forma geral. Não eram perfeitas, claro. Era um esquema de realocação, as pessoas estavam vivendo em um assentamento terrível, realmente terrível, sem água, esgoto ou eletricidade. Por meio de uma PPP, eles foram deslocados para um lugar melhor.
Havia três prédios neste local e um deles era mais chique. Os lucros que a construtora fazia com a construção deste prédio de nível mais alto reduziam os custos dos prédios para a população de baixa renda. Então, era um esquema que segregava: um prédio para os mais ricos, outros para os mais pobres - mas os moradores não pareciam se incomodar e pareciam bastante satisfeitos. O problema é que não havia espaço para todos os que viviam antes do assentamento informal. Havia regras como provar que moraram ali por um certo tempo, o que desqualificou boa parte.
Era preciso também ter uma quantidade mínima de renda, o que também eliminava parte dos interessados. Então, não quero indicar um modelo perfeito, mas quero mostrar que é possível. O governo tem que ser forte. Tem que ser capaz de dizer aos construtores qual é o limite máximo de lucro em determinadas áreas, e determinar que o excedente seja destinado a fundos ou verbas destinadas à moradia. Mas eu não vejo os governos sendo firmes com as construtoras. Não os vejo regulando o mercado imobiliário genuinamente para que as pessoas pobres também possam ser beneficiadas. Estamos bem longe disso. Diferente de vários outros, o mercado imobiliário é completamente desregulado, em qualquer parte do mundo.
BBC Brasil - Como as construtoras se tornaram tão fortes nestas negociações?
Leilani Farha - Esta é a grande pergunta do momento. O mercado imobiliário e de construção, essa indústria como um todo, têm um peso enorme no PIB de qualquer país. Isso é gigantesco e vem daí o poder político deles. É muito importante para as economias que esta indústria esteja bem e satisfeita. Os empresários normalmente têm uma cadeira na mesa de reunião dos políticos em muitos países, incluindo no meu, o Canadá. Há muita corrupção nesta relação, e isso também acontece pelo enorme poder econômico que eles têm. Acho que no Brasil isso é particularmente grande, não?
BBC Brasil - O governador de São Paulo, Márcio França (PSDB), foi ao local logo após a tragédia. Ele disse que o que aconteceu era "previsível", criticou apoiadores de ocupações e disse que quem vive ali "procura encrenca", porque os espaços não são seguros. Muitos o defenderam, muitos o criticaram. Que acha?
Leilani Farha - Quando as pessoas estão sem teto, elas vão buscar um lugar para viver. Porque ninguém quer ser sem teto e a falta de moradia é algo inaceitável para qualquer um. Então, acho que o governador está correto em não estar surpreso com o que aconteceu. Mas por razões diferentes. Ele não deveria ficar surpreso com o fato de que, quando governos falham com seu compromisso de garantir acesso a moradia, as pessoas ocupam prédios vazios. Ele também não deveria ficar surpreso que tragédias como essa ocorram porque estes prédios não recebem serviços apropriados da prefeitura ou diferentes níveis de governo. Isso, sim, é previsível.
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