CAPITAL

Com três cães, mulher vai a pé até Brasília para pedir saúde de qualidade

Até que ponto vale a pena lutar por uma causa? A pergunta é inevitável para quem vê a cabeleireira Edna Lima Bronze, 38 anos, preparando-se para o que ela considera a maior missão de sua vida. Motivada, ou como ela prefere dizer, decepcionada, com a situação precária do sistema de saúde público do Brasil, ela decidiu sair de Campo Grande rumo a Brasília para reivindicar o direito a ter um atendimento digno pelo SUS (Sistema Único de Saúde) o que, segundo ela, a maior parte da população não tem.

Até ai, nada demais, se não fosse a maneira inusitada que ela decidiu realizar o protesto. Edna seguirá até a capital do país a pé, em um trajeto elaborado por ela que totaliza 1.130 quilômetros.

Ao seu lado, apenas as três fiéis companheiras: as vira-latas Malala, 3 anos, Maria Quitéria, 2, e Puma, 1. A ideia de levar as cachorras também é uma forma de protesto contra a falta de estrutura na saúde pública para atender os animais de famílias carentes. “Se está ruim para nós humanos, imagina para eles”, afirma.

Para acompanhar a dona, as cadelinhas foram adestradas e aprenderam a caminhar ao lado do carrinho utilizado para transportar os mantimentos e objetos pessoais necessários para a viagem. Como forma de garantir a segurança delas, já que a maior parte do trajeto será feito em acostamentos, as cachorras seguirão viagem presas à uma corrente, mas que dá liberdade total de movimento.

Por isso se engana quem pensa que as cachorras irão sofrer. Edna conta que desde pequenas elas são sua companhia durante as caminhadas que serviram de treino para o desafio.

Além disso, a cabeleireira garantiu ração de primeira linha e água mineral para as três. Como são de porte pequeno, Edna sabe que elas podem não ter disposição para acompanhar os passos da dona, que pretende caminhar entre 6 e 8 horas/dia.

Ao menor sinal de cansaço, as três seguirão viagem dentro do carrinho, que também vai abrigá-las quando o sol começar a esquentar o asfalto. “Tenho todo o cuidado para não ferir a patinha delas. Estou tomando mais cuidado com elas do que comigo. As três passaram por check up veterinário e estou levando toda a documentação e carteira de vacinação delas, caso precisem de algum socorro”, ressalta.

Quanto à própria saúde, Edna também fez uma série de exames que atestaram condição física apta a enfrentar a longa caminhada. Aliás, os treinos começaram há cerca de três anos, com caminhadas dentro de Campo Grande. “Nunca percorri um caminho tão grande, mas creio que vai dar tudo certo”, diz.

Imprevisto – No entanto, logo no início da jornada houve um contratempo, levando ao adiamento da partida, que deveria ter acontecido às 5 horas desta quarta-feira (19), para o início da tarde. O eixo do carrinho quebrou e precisou ser consertado às pressas.

Reparo feito, ela concluiu os últimos detalhes, acomodando os objetos pessoais e as caixas com produtos enlatados, que vai garantir a alimentação nos trechos em que não encontrar postos ou restaurantes. “Acredito que o trajeto mais complicado é aqui dentro do Estado, já que algumas cidades são distantes mais de 100 quilômetros”, diz.

Nesse caso, a alternativa será transformar em barraca o carrinho, semelhante àqueles utilizados por catadores de recicláveis e construído por um serralheiro especialmente para a viagem.

Feito por um serralheiro, o carrinho custou R$ 400,00 e conta com barras e lona que serão montados à noite para abrigar Edna e os cães, quando ela não conseguir pousada em algum posto de combustíveis ou parada.

A intenção é comer em restaurantes de beira da estrada, para não perder tempo cozinhando. Para os imprevistos, ela garante levar o mínimo possível em dinheiro, até por questão de segurança. O restante do auxílio ela espera receber de patrocinadores, já que publicou vários vídeos no Facebook da filha explicando os motivos de sua viagem.

Munida com dois pares de tênis, um colchonete, roupas leves e um agasalho, ela acredita que completa sua missão em 30 dias. A expectativa é chegar na divisa com Goiás em 15 dias, caso não ocorram imprevistos grandes. Edna também leva dois pneus reserva e um galão de água. Somada ao peso do carrinho, Edna deverá empurrar quase 50 quilos de carga, mas o peso não desanima. "Lembro das pessoas morrendo sem atendimento e esqueço as dificuldades", conta.

Preocupação com o próximo – O hábito de auxiliar os carentes e se envolver no drama dos mais necessitados é cultivado pela cabeleireira desde a infância. “Sempre me comovi com as dificuldades dos outros e não me conformo com injustiças”, afirma.

Em seu trabalho, ela costuma ouvir dos clientes histórias de mal atendimento no SUS, erros médicos e falta de vagas. Todo esse panorama sempre criou uma angústia e desejo de fazer algo que chamasse a atenção das autoridades da área de saúde.

Até que um dia ela sofreu na própria pele as deficiências do sistema. Foi há três anos, quando sentindo fortes dores na região do útero, buscou ajuda nos postos de saúde da Capital. Sem uma solução para o problema, ela começou a ter hemorragias e só na terceira ida ao posto, conseguiu encaminhamento para o Hospital Regional.

Sem um profissional disponível para operar o equipamento de ultrassom nos finais de semana, ela foi levada para a sala de cirurgia sem o médico saber qual era o problema. "Eles pensavam que fosse apêndice, mas quando a médica fez o corte na lateral, viu que não era. Acabaram fazendo um corte de uns 20 centímetros na barriga para descobrir uma gravidez nas trompas", lembra.

Após a cirurgia, ela precisou batalhar para conseguir uma plástica reparadora, mesmo com um médico dizendo que o corte havia sido feito de forma errada. A solução para o problema veio depois que ela se acorrentou na grade do hospital por dois dias. "Consegui resolver meu problema, mas e as pessoas que desistem, os idosos que não tem informação? Esses morrem nas filas de espera", protesta.

A filha adotiva Marina Velma Garcia, 17 vê na atitude da cabeleireira, um exemplo de perseverança. Ela conta que Edna sempre auxiliou jovens que fogem de casa, oferecendo abrigo, além de ajudar financeiramente pessoas carentes. "Eu mesma sou um exemplo de pessoa acolhida por ela. o bacana é que ela também conseguiu que outras jovens se reconciliassem com suas famílias e voltassem para casa", revela.

Mas o caráter altruísta não foi suficiente para convencer o marido, o eletricitário Luciano Bronze, de imediato, nem os outros dois filhos. Foram precisos cinco anos de conversa e, mesmo após a aceitação, o risco de sofrer algum acidente preocupa os familiares. "A gente tem medo, mas é o que faz ela feliz", se conforma Marina.

Com uma bandeira do Brasil nas costas e a cabeça raspada para lembrar dos pacientes com câncer que dependem do SUS, Edna seguiu, no início da tarde, para o posto Arara Azul, na BR-060, onde esperou o sol dar uma aliviada, especialmente para proteger as cachorrinhas e começar a viagem.

Além dos mantimentos, na bagagem a expectativa de chegar ao Palácio do Planalto e ser recebida por algum representante do governo federal para ouvir suas reivindicações. "Não faço ideia do que vai acontecer no caminho, nem como vou voltar, mas farei de tudo para ser recebida", afirma.

Antes do último beijo de despedida na filha, Edna lembra da primeira pergunta, sobre se tanto esforço vale a pena. E responde. "É mais importante pensar no coletivo do que em si mesmo. Sempre me coloque no lugar dos outros. Sei que vou receber críticas, mas tenho minha consciência tranquila", conclui.

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