Aos 16 anos a menina tímida sentada no sofá na minha frente já passou por coisa demais. Ela, que na verdade nasceu ele, se descobriu presa em um corpo que não lhe pertencia quando tinha apenas 13 anos. Há três anos vive uma luta diária por respeito e desde o começo de 2017 enfrenta o descaso em um dos lugares em que deveria ser de acolhida, a escola.
Para continuar no colégio que estuda há dois anos e evitar uma transferência compulsória, a adolescente precisou recorrer à Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul. Para contar como a menina, que vai ter o nome preservado na matéria, chegou nessa situação, preciso voltar alguns anos.
A jovem e a mãe dela, uma professora de dança de 42 anos, receberam nossa equipe em casa. Sentadas no sofá da sala, elas contaram que foi aos 10 anos que a menina começou a sofrer preconceito na escola. Na época, ainda se vestia como menino, mas era constantemente chamada de gay e precisava conviver com os colegas rindo de sua voz e até dos quilinhos a mais que tinha.
Aos 13 que a jovem percebeu que não era um menino, que não se sentia assim e por isso se assumiu mulher. "Eu não me lembro de quando percebi. Mas desde pequena eu gostava de ser as personagens mulheres. Eu sempre era Lupita de Rebelde e brincava de teatro com minha irmã".
Sem coragem de se aceitar, a adolescente começou a se envolver com drogas e a consumir bebidas alcoólicas. "Eu tinha medo, principalmente da minha família. A primeira vez que fumei maconha minha amiga me ofereceu e falou: fuma, você vai esquecer todos seus problemas. Mas quando voltava, passava o efeito, voltava tudo pior", contou a menina.
Passou então a usar roupas femininas e maquiagem ao mesmo tempo em que ‘as implicâncias’ com ela aumentaram. "Nessa época ela estudava em outra escola. Começou a se maquiar no banheiro das meninas com as amiguinhas e um dia teve um terçol, ai o pessoal da direção começou a falar para ela que ela era homem, que a maquiagem estava dando alergia, que aquilo era coisa de mulher, não de homem", contou a mãe.
Depois do episódio, as ações contra a menina aumentaram. "Ela era tirada da fila, colocavam ela no fundo, o preconceito começou a ficar assim, até que um dia jogaram uma bolacha na professora e ela acusou minha filha, ela respondeu e isso deu problema. Percebi que era preconceito quando vi a professora falando ‘mas você é hominho, não pode achar que é menina, ficar se maquiando, vestindo roupa de menina".
Para preservar a filha, a professora a tirou da escola e a levou para estudar em um colégio mais perto de casa, desta vez para uma Escola Estadual no Parque Residencial Iracy Coelho Netto. No começo, por quase um ano, a menina foi acolhida no local, mas foi depois da mudança de diretor, em novembro de 2015, que os problemas começaram, segundo a família.
A primeira vez que foi agredida, depois de um desentendo para defender uma amiga, o que poderia ser uma ‘briga normal’ entre estudantes se tornou ainda pior com a sobrecarga de ódio e preconceito. "Um menino do terceiro ano derrubou ela na frente da escola, subiu em cima dela e enquanto batia, gritava para ela virar homem", lembra a mãe da adolescente.
Foi também por conta dessa agressão que a diretoria da escola se mostrou ainda mais omissa ao que acontecia com a jovem. "Fui atrás da escola, não fizeram nada, não quiseram nem me passar o nome do menino que bateu nela. Aí procurei a polícia". O primeiro boletim de ocorrência então foi registrado.
Os problemas foram piorando e até o banheiro se tornou terreno proibido para ela. "Me falaram para só usar o banheiro em casa, porque se eu fosse no banheiro dos meninos eles iam caçoar de mim porque me visto de mulher e se eu for no banheiro das meninas vou estuprar elas", lamentou a jovem.
O simples fato de ter um nome social, que por lei deve ser respeitado, muitas vezes é ignorado na escola. "Minha luta começa aí. Todos os anos eu preciso ir até a escola no começo as aulas explicar que ela tem um nome social e que é para ser chamada assim", lembra a mãe. Enquanto isso, colegas e até professores chamam a menina ainda pelo nome de batismo, causando constrangimento na frente de pessoas que sequer conhece a história da adolescente.
"Uma vez queimei a perna no escapamento da moto, não podia usar calça, então fui de saia longa, já para não dar problema, mas não me deixaram entrar". Mais uma vez, a mãe da adolescente bateu de frente com a direção e só assim viu a filha dentro da escola. "Você não precisa entender, não tô pedindo isso, tô pedindo para respeitar, ela tem direitos".
O tempo foi passando e um problema com uma colega de classe voltou a acontecer. Desta vez a menina chegou a ser ameaçada pela autora com um canivete. Assustada, procurou a diretoria, que como saída para o problema ligou para a professora de dança e pediu para buscar a filha 10 minutos mais cedo.
"O diretor me falou que não podia revistar a menina e quando eu questionei o porquê ele não chamava a polícia ele me respondeu que não queria isso na escola dele. Quem deve que sair da escola foi minha filha, não aconteceu nada com a menina que estava ameaçando ela".
Foi justamente pelos problemas com a mesma colega que a direção chamou a mãe da adolescente para pedir que ela fosse retirada da escola. "Eu procurei a polícia e uma advogada e eles me orientaram a deixar ela na escola, eu já tinha matriculado ela então não tirei. No começo do ano ele veio falar comigo".
Em uma discussão, o diretor exigiu que a menina fosse retirada do colégio e que para isso faria uma reunião com o colegiado para decretar a transferência compulsória da menina. "Ele falou que ela só continuava na escola com ordem judicial, e eu avisei que no outro dia ia procurar a promotoria".
O caso então foi levado ao conhecimento da 3ª Defensoria Pública de Fazenda de Campo Grande. O diretor recebeu uma notificação para prestar esclarecimento sobre os fatos e só com o documento enviado pela defensora pública autorizou a menina a continuar a assistir as aulas.
"Eu quero saber dele se não é preconceito. Enquanto minha filha precisa de um documento, de advogado, para continuar estudando e a menina que ameaçou ela continua normalmente na escola, só em outro turno. Eu quero ouvir dele se isso não é preconceito", questionou a professora.
Por medo da segurança da filha, a professora de dança abriu mão do emprego fixo e passou a buscar e deixar a menina todos os dias na escola. Mãe de 5 filhos, a mulher cria e sustenta a família com ajuda do pai dela e do aluguel de uma casa que tem em seu nome. "Todas as vezes que não vou buscar ela, alguma coisa acontece. Sei que ela corre risco, eu também corro".
"Eu tô cansada de tudo isso, às vezes eu e a mamãe pensamos em desistir de tudo isso, mas aí pensamos que podemos ir um pouquinho mais. Eu pensava que era a família que ia ser difícil, mas a sociedade está sendo mais difícil", diz à menina que daqui a três anos, quando terminar o ensino médio, que ser esteticista e quem sabe, ter liberdade para viver como é.
OAB
Foi quando a professora procurou a Deaij (Delegacia Especializada de Atendimento à Infância e Juventude) para denunciar a ameaça que a filha sofreu na escola, que toda a situação vivida pela menina chegou ao conhecimento da polícia. O delegado da unidade, Bruno Henrique Urban procurou então a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o caso foi denunciado.
A pedido do delegado, a presidente da Comissão de Diversidade Sexual, Maria Caroline Bertol Carloto Vieira, foi até a delegacia e conversou com mãe e filha. Segundo ela, um ofício já foi enviado à escola pedindo explicações sobre as denuncias feitas pela família. "Assim que tivermos um posicionamento decidiremos quais medidas são possíveis ser tomadas", explicou.
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