O impacto das medidas protecionistas adotadas pelo presidente Donald Trump vão além de guerras tarifárias com aliados e adversários e representam o desmonte da ordem comercial global baseada em regras que deu impulso à globalização, ao estabelecer procedimentos claros para a solução de disputas entre países e empresas.
O abandono desse sistema deve levar à redução de investimentos em setores exportadores, menor internacionalização de companhias e redução no ritmo de crescimento global, avaliam especialistas em comércio. Em seu lugar, deve surgir um ambiente fragmentado e imprevisível, no qual o capital se sentirá menos seguro para cruzar fronteiras.
O ataque à arquitetura erguida em torno da Organização Mundial do Comércio (OMC) faz parte da ofensiva mais ampla de Trump contra a ordem mundial liberal criada sob a liderança dos EUA depois da 2.ª Guerra, que teve momentos decisivos nos últimos oito dias.
No sábado retrasado, o presidente americano chocou aliados ao se recusar a assinar a declaração das democracias industrializadas reunidas no G-7 e ao se referir ao primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, como "fraco" e "desonesto". Quatro dias mais tarde, ele repetiu elogios ao ditador Kim Jong-un e afirmou que exercícios militares entre os EUA e a Coreia do Sul são uma "provocação", mesma linguagem adotada pela Coreia do Norte.
Na sexta-feira, impôs tarifas sobre US$ 50 bilhões de importações da China, decisão vista por analistas como a declaração oficial da guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo. Antes, Trump já havia iniciado conflitos com quase todos os aliados americanos, ao impor tarifas à importação de aço e alumínio.
"O protecionismo não é o caminho que leva à riqueza e ao desenvolvimento econômico. Se fosse, o Brasil seria o país mais rico do mundo", ironizou Gary Hufbauer, especialista em comércio do Peterson Institute for International Economics. Segundo ele, as políticas de Trump isolaram os EUA e têm o potencial de fortalecer a liderança da China.
Hufbauer acredita que a guerra comercial iniciada por Trump colocará um freio no avanço da globalização. "Talvez não haja um retrocesso, mas nós veremos menos estímulos para empresas investirem em outros países", ressaltou. "Poderemos voltar a um sistema de comércio semelhante ao que tínhamos antes da 2.ª Guerra, sem uma instituição para solução de conflitos, o que não beneficia ninguém."
Ao impor tarifas sobre aço e alumínio, Trump lançou mão da justificativa de ameaça à segurança nacional, um mecanismo raramente utilizado que, segundo os EUA, está fora do âmbito da OMC. Ao retaliarem, os países atingidos também agiram de maneira unilateral.
"O governo Trump decidiu ignorar a OMC e os outros países fizeram o mesmo", declarou o advogado Pablo Bentes, diretor-gerente para Comércio Internacional e Investimentos do escritório Steptoe. Mas a ofensiva vai além. Bentes disse que os EUA decidiram "sufocar" o sistema de solução de disputas da instituição, ao barrar a nomeação de três juízes para o seu órgão de apelação. Hoje, ele opera com quatro membros, mas o número cairá para um em dezembro de 2019, o que inviabilizará seu funcionamento. Sem a chancela do órgão, decisões da OMC não são efetivadas.
As tarifas anunciadas na sexta-feira também foram parcialmente adotadas fora das regras da organização, ressaltou Bentes. Os EUA acusam os chineses de "roubo" de propriedade intelectual e inovação, em razão da exigência de que certas empresas americanas se associem a empresas chinesas e transfiram tecnologia se quiserem atuar no país.
O ataque à ordem internacional liberal promovido por Trump coloca em risco a arquitetura que deu relativa estabilidade ao mundo e permitiu a prosperidade dos últimos 70 anos, escreveu Robert Kagan, do Brookings Institution, em artigo publicado no Washington Post. "Os aliados dos Estados Unidos estão prestes a descobrir o que unilateralismo real significa e como se expressa a hegemonia real, porque a América de Trump não se importa", afirmou. "Ela não reconhece nenhum compromisso moral, político ou estratégico. Ela se sente livre para perseguir objetivos sem respeito ao efeito sobre aliados ou sobre o mundo. Ela não tem nenhum sentimento de responsabilidade com nada além dela mesma."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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