Itaporã

Itaporã: Mãe perdeu 40 anos de memória e todo dia é "como se fosse a 1ª vez"

Dona Therezinha se aposentou como costureira, mora em Itaporã desde 2012 e não desgruda do marido, com quem completou Bodas de Ouro (50 anos de casamento) no ano passado.

A primeira memória que vem à cabeça de dona Therezinha é dela aos 19 para 20 anos, com a filha mais velha, Silvia, no colo, ainda bebê. Thereza Aparecida Azedo Belloni teve outras três filhas depois de Silvia. A bebê da imagem que ela guarda tem hoje 50 anos e a mãe, 70 completados ontem. Depois de uma meningoencefalite herpética, Thereza perdeu 40 anos de memória, e todo dia é "Como se fosse a primeira vez".

"A meningoencefalite é uma inflamação da meninge que vai para o encéfalo e que atinge várias áreas do cérebro. As informações estão lá, mas ela não consegue acessar. A sequela que ela tem é afasia nominativa, déficit de memória recente, e perda de memória de longo prazo", descreve Juliana Belloni Furlan, de 41 anos.

Foi Juliana, psicóloga e terceira filha de dona Therezinha, quem entrou em contato com o Lado B para contar a história da mãe, que, apesar de não se lembrar de quatro décadas da vida dela - e, consequentemente, das filhas - , resistiu à meningite e está presente aqui e agora para criar novas memórias.

O diagnóstico de dona Therezinha foi precisamente no Dia das Mães de 2011, dia 8 de maio. Ela começou a sentir dor de cabeça e apresentou pressão alta cinco dias antes, mas nada apontava ser sintoma de um quadro sério e delicado. Na sexta-feira daquele final de semana, ela teve um desmaio e acabou internada.

No primeiro atendimento, diagnosticaram um quadro de fadiga crônica por conta da imunidade baixa e, depois de dois dias de internação, a família transferiu dona Therezinha para outro hospital. A essa altura, a matriarca da família já não falava nem andava. 

No Proncor, aqui em Campo Grande, o médico que a internou chamou de pronto um neurologista, que, ao examiná-la, já falou da possibilidade de meningoencefalite herpética.

"Na hora a gente ficou bem aliviado, mas meu esposo [que é médico] virou pra mim e falou que não era tão bom assim", conta Juliana.

Ela e o marido moram em Ribas do Rio Pardo. À época da internação, os pais moravam em Terenos, onde seu Elias, marido de dona Therezinha, administrava uma fazenda.

"Ela ficou internada 28 dias. Comemorou 61 anos no Proncor, mas ela não tem essa recordação. Ela estava bem fora do ar, sem saber quem era, sem saber falar direito. Ela teve que reaprender a andar no hospital", recorda Juliana.

Os médicos e o genro de dona Therezinha explicaram para a família a gravidade do caso e alertaram que dificilmente ela sairia sem sequelas graves. 

"Só que, assim, eu acredito muito nas pessoas que aparecem na nossa vida, o dr. Alexandre e o dr. Helder foram honestos o tempo todo com a gente, mas a gente queria muito salvar ela e, com a nossa fé, e pela inteligência dela, com 20 dias de internação, ela já estava começando a andar e a falar", conta Juliana.

Os profissionais que a atendiam deixaram bem claro que levaria dois anos para descobrir todas as sequelas, no entanto, a família já sabia que uma delas seria a memória. 

"A gente ficou até feliz, porque o que a gente queria era que ela vivesse", compartilha.

Com 28 dias, dona Therezinha recebeu alta. Em casa, Juliana conta ter sido a primeira a perceber algumas coisas na mãe. Por não ser "reconhecida" como filha, ela não chamava Thereza de mãe, justamente para não causar estranheza na paciente. 

"Um dia cheguei e fiz a pergunta que ninguém conseguia fazer, porque é difícil: 'qual é a primeira memória que você tem aí na cabeça? O que vem para você agora?"



 Nesse dia a gente descobriu que o que ela tinha mais vivo na cabeça foi ela com 19 para 20 anos com a minha irmã mais velha bebê". No momento estavam Juliana e o pai que receberam com choque a verdade.

"Então nós perdemos 40 anos de história, e a partir daí começamos a lidar com estes 40 anos perdidos. A nossa história, a minha e das minhas irmãs, não existe", desabafa Juliana, entre lágrimas, ao recordar.

 

Os três primeiros meses envolveram também viver um luto quase diário.

"Ela queria saber da mãe dela, perguntava da minha avó, do meu avô. Cada vez que você falava, ela chorava e era um luto. Então a gente começou a falar que ela tinha vivido, que ela tinha ido até lá, sofrido, para ela ficar tranquila e em paz", comenta Juliana.

Há alguns anos, dona Therezinha deixou de perguntar.

A memória da família foi-se em parte, junto com a própria história de quatro décadas. Seu Elias, o esposo de dona Therezinha e pai das quatro meninas, sabe de algumas coisas, a irmã mais velha, Silvia, a quem o restante da família atribui ser "a memória de todo mundo", também guarda recordações.

Comparando com um quadro de Alzheimer, por exemplo, doença que causa sofrimento na família, porque a própria pessoa não tem consciência, o caso de dona Therezinha traz tristeza também a ela.

"Ela é uma pessoa consciente, inteligente e percebia que não tinha aquela história. A gente sofre todo mundo junto, sofria, porque hoje a gente está muito bem, mas ela demorou três anos para olhar pra mim e falar: você é a minha filha, e ela não lembrar de mim foi muito doloroso".

Claro que houve um período em que Juliana se deprimiu, também por entender o sofrimento da mãe.

"Me angustiava, mas depois me trouxe mais clareza e me fez mais forte".

Quando a família passou a visualizar o fato da mãe estar viva, como eles queriam, o que surpreende até hoje os médicos, enxergaram esperança e também gratidão.

"No último dia que ela veio aqui em casa, falou assim: 'me fala como eu era quando eu era a sua mãe? E eu disse que ela era muito brava, aí ela se virou para mim e disse: credo, você tem que falar que eu era boazinha", e as duas riram. 

Dona Therezinha se aposentou como costureira, mora em Itaporã desde 2012 e não desgruda do marido, com quem completou Bodas de Ouro, ou seja, 50 anos de casamento, no ano passado. Os dois se conheceram na escola, estudaram juntos de 1958 a 1961, e depois começaram a namorar.

"Ela não me esqueceu porque fui a primeira pessoa que ela viu no hospital, e se amarrou",

Repete seu Elias Belloni, de 71 anos, sobre o que os médicos lhe disseram.

"Ela se apegou a mim, não fica sozinha, onde eu vou ela vai, o que eu como, ela come. Ela é a mesma pessoa, perfeita, vaidosa, bonita, dedicada".

"Como se fosse a primeira vez", filme estrelado por Drew Barrymore e Adam Sandler, retrata, de certa forma, a condição de dona Thereza, em relação à perda de memória recente.

"É igual... Eu fiquei anos sem assistir, semana passada que voltei a assistir", fala Juliana sobre o filme. "Meu pai faz essa parte, ele fala: 'olha, a fulana vai vir', aí eu chego e ela fala: 'Oi, Ju', mas não é porque ela lembra, é porque ele falou". 

As novas memórias de dona Therezinha incluem os netos - Gabriel, de 11 anos, Otávio e Luísa, ambos com 6.  Em uma conversa com ela, por exemplo, Juliana explica que o papo vai rolar solto, que a mãe vai falar de atualidades, mas que talvez se a gente voltar a conversar amanhã, ela não se lembre. "Se ela te ver todo dia vai conseguir memorizar". 

Um dos detalhes mais intrigantes da história é que hoje Thereza faz outra avaliação da vida. Apesar de ter educado as filhas falando que elas tinham de estudar para não depender de ninguém, porque ela mesma não estudou, agora ela se culpa e diz que "jogou a própria vida fora".

"Minha mãe já era uma feminista. Ela dizia que a gente tinha que ser independente. Ela não estudou porque não quis mesmo, meus avós eram sitiantes, ela tinha que ficar no colégio interno para estudar, mas quis ficar com eles. E agora ela fala muito isso: 'eu não estudei e joguei minha vida fora'. É muito louco você repassar sua vida assim, você ter essa possibilidade e não poder mudar, ela não lembra das escolha que ela fez, ela só tem a consequência, e isso é difícil principalmente para o meu pai, mas a gente segue", diz Juliana.

Parte do que a família descreve ao Lado B não é falado entre quatro paredes, justamente para não fazer a mãe sofrer.

"A gente não pensa, a gente vive, a gente dá carinho, dá amor e está presente, porque se não ela vai sofrer".

Silvia Mara Belloni, a filha mais velha, lembra que o olhar perdido, que a mãe tinha antigamente, hoje já se concentra num olhar maternal.

"A mãe que eu tinha, ela está diferente, mas ela é a minha mãe, eu tenho ela, e isso para mim é o mais importante. O que a gente sente falta é das conversas e é uma situação estranha, porque eu lembro de como ela era sempre muito ativa, mas a gente evita falar no assunto", diz.

Volta ou outra, dona Therezinha fala alguma coisa dos anos que ela não guardou. "É como se tivesse dado um 'tilt' e ela lembra", mas nada que indique que a memória voltou.

A família toda vem de Adamantina, interior de São Paulo, quase na divisa com Mato Grosso do Sul. Silvia, Ciliane, Juliana e Mariana, são todas formadas e motivo de orgulho para os pais. Nessa ordem, uma é bibliotecária, outra enfermeira, tem a psicóloga e uma veterinária. As filhas, também nessa ordem,  estudaram na UEL, em Londrina, na UEM, em Maringá, e a mais nova na Uniderp.

"E essa é a maior conquista dela, e me desculpe, mas quando eu falo dela, fico emocionada. O maior legado da minha mãe foi ver nós quatro terminando a faculdade. Era o sonho dela. Uma vez um parente perguntou se ela não tinha o sonho de ver a gente entrando na igreja vestida de noiva, porque demoramos um pouco a casar, e ela respondeu que queria ver a gente formada, não ligava para casamento, isso resume muito ela", recorda Silvia.

Ciliane, a segunda filha, mora na frente da casa dos pais, em Itaporã. Silvia e Mariana vivem em Dourados. Juliana, em Ribas do Rio Pardo. Depois do acontecido, ninguém nunca mais ficou mais de 20 dias sem visitá-los, exceto agora, pela pandemia.

A festa dos 70 anos completados ontem seria com as amigas de infância, na cidade natal da família. Plano adiado para os 71 anos por conta do coronavírus. 

Para a família, os 40 anos "perdidos" ficam em segundo plano diante da vida e do sorriso da mãe.

"O que a minha mãe me ensinou? A não desistir jamais. A gente viveu o inimaginável. Eu tenho esperança. Aprendi a entregar e o que acontecer vai ser para o seu bem", fala Juliana.

"O que eu aprendi com ela é que a gente é muito frágil, e tem que aproveitar os momentos da vida do jeito que ele é: ter as pessoas que a gente ama próximo é o mais importante", resume Silvia.  

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