Declarações do tipo feitas recentemente por integrantes do Congresso e do governo federal colocaram em dúvida a eficiência da agência ligada ao Ministério da Saúde responsável por regular e fiscalizar empresas, produtos e serviços na área no país.
As críticas mais duras vieram do presidente Jair Bolsonaro na terça-feira (06) quando ele afirmou que agências como a Anvisa têm "um poder enorme, para o bem ou para o mal".
"Quanto tempo leva o registro na Anvisa? Será que esse tempo todo justifica? Será que é excesso de zelo ou só está procurando criar dificuldade para vender facilidade?", perguntou o presidente durante a inauguração de uma fábrica de medicamentos no interior de São Paulo.
A fala de Bolsonaro vai ao encontro de um projeto de lei apresentado por um deputado federal de seu partido, General Peternelli (SP), e apoiado por parlamentares de outras nove legendas.
O PL 3871/19 propõe que medicamentos autorizados nos Estados Unidos, Japão, Canadá e países da Europa tenham seu registro concedido automaticamente no Brasil.
"A Anvisa faz um trabalho importante, mas a aprovação de medicamentos é morosa. Entendo que leva tempo para analisar o laboratório e o medicamento, não pode meter um carimbo e pronto. Mas, quando o medicamento é aprovado, já existe outro melhor", diz Peternelli à BBC News Brasil.
De acordo com o deputado, os países mencionados no projeto têm tradição em pesquisa e desenvolvimento destes produtos e autoridades sanitárias reconhecidas por seus padrões técnicos.
Ao aproveitar seu trabalho, afirma ele, a aprovação no Brasil poderia ser "desburocratizada". "Isso vai fazer com que os produtos cheguem à população mais rápido e com segurança", diz.
No entanto, o diretor-presidente da Anvisa, William Dib, afirma que os prazos da agência estão alinhados com os de agências de ponta de outros países. Segundo Dib, um produto leva três anos para chegar ao mercado após o pedido de registro à Anvisa, em comparação com dois anos e meio nos Estados Unidos.
"Então, é uma diferença pequena. O mundo todo é mesmo lerdo na liberação de produtos farmacêuticos, porque isso exige uma série de estudos", afirma Dib, que preferiu não comentar diretamente as declarações do presidente.
Ele explica que isso envolve analisar pesquisas realizadas pelas empresas para garantir que os medicamentos têm qualidade e são eficazes e seguros para a população brasileira. "O que vamos fazer? Liberar e depois pedir desculpa ao ver que não está funcionando? Não é pedindo desculpas que vamos chegar a algum lugar."
Dados da Anvisa divulgados em agosto do ano passado apontam que o tempo médio de registro de medicamentos no Brasil caiu significativamente desde o início de 2017.
Hoje, é de 188 dias para genéricos e similares, de 276 dias para produtos novos - que tenham um princípio ativo inédito no país - e de 256 dias para inovadores - que apresentam uma melhoria em relação a um já existente.
Após o registro, as empresas ainda podem fazer certas alterações, como no processo de fabricação, por exemplo, que precisam ser aprovadas pela agência. Também estabelecem junto à Anvisa o preço máximo do medicamento e o preparam para ser vendido, por isso a diferença entre o tempo de registro e de chegada ao mercado mencionado por Dib.
A agência diz que a redução foi resultado de mudanças de procedimentos feitas a partir da promulgação em dezembro de 2016 da lei 13.411. Elas aceleraram o processo de registro e diminuíram a fila de produtos que aguardavam análise.
A norma anterior, de 1976, estabelecia um prazo máximo de 90 dias, mas não determinava o que seria feito caso isso não fosse respeitado - o que ocorria em muitos casos segundo fontes do mercado.
A nova lei estabelece prazos maiores - de 180 dias para medicamentos considerados prioritários, de acordos com critérios do Ministério da Saúde, como para doenças raras, por exemplo, e de 365 dias para os não prioritários. Mas agora prevê que será apurada a responsabilidade de servidores caso os limites não sejam cumpridos.
Sob essas regras, o tempo de registro foi reduzido em 88% para genéricos e similares, 49% para novos medicamentos e 61% para os inovadores, para pedidos feitos a partir de abril de 2017, em comparação com a duração média deste processo até então.
Dados do Centro Para Inovação em Ciência Regulatória (CIRS, na sigla em inglês), empresa independente que faz análises do setor em diferentes países, apontam ainda que a agência brasileira só é superada no tempo médio de registro de medicamentos novos pela Food and Drug Administration (FDA), sua equivalente nos Estados Unidos.
Em 2018, a agência americana levou 244 dias para conceder registros de novas drogas, 32 dias a menos que a Anvisa, que foi mais ágil do que as agências do Japão (323 dias), do Canadá (348 dias), da Austrália (363 dias) e da Europa (436 dias).
"A Anvisa já foi lenta, mas isso mudou com todas as mudanças feitas por ela própria voltadas justamente para uma aprovação mais rápida", diz o farmacêutico Dirceu Barbano, que foi presidente da agência entre 2011 e 2014.
Nelson Mussolini, presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), que representa 380 empresas do setor que atuam no Brasil, concorda que a agência é hoje muito mais eficiente do que no passado.
"A Anvisa é muito nova, completou 20 anos, enquanto a FDA e a EMA [a agência europeia] têm mais de cem. Para tão pouco tempo, teve um desenvolvimento astronômico, e hoje é reconhecida internacionalmente como excelente", diz Mussolini.
Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil, que representa 12 empresas farmacêuticas brasileiras que respondem por 30% dos medicamentos fabricados no país, de acordo com dados da própria organização, avalia que o projeto de lei apresentado na Câmara não se justifica ao se analisar o funcionamento da agência hoje.
"Quem entrar no portal da Anvisa vai ver que hoje não existem pedidos de registro de medicamentos prioritários pendentes na fila, então, não há uma circunstância que esteja prejudicando quem quer que seja", afirma.
Por sua vez, o deputado Peternelli afirma que apresentou o projeto "pensando no bem comum". "Se um paciente com câncer tiver que esperar dois anos para poder usar um medicamento, ele morre", afirma.
O presidente da Anvisa diz que isso não corresponde à realidade. "Se um médico receitar algo que não existe no Brasil e tiver registro em outro país, a Anvisa libera a importação. A coletividade não tem acesso, mas o indivíduo tem", afirma Dib.
Arcuri explica que um dos aspectos avaliados pela Anvisa é a estabilidade dos produtos, ou seja, se eles não se degradam rapidamente no clima brasileiro.
"As nossas condições climáticas não são as mesmas dos Estados Unidos ou da Europa, por isso é crítico demonstrar que o medicamento sai da fábrica, é transportado e armazenado sem se dissolver ou sofrer nenhuma alteração essencial por causa do calor ou da umidade. E as agências destes países não vão fazer testes para isso", diz ele.
Mussolini destaca ainda que é verificado se um remédio é eficaz para tratar os brasileiros, que têm características específicas em relação a populações de outras regiões do mundo.
"Temos uma população muito miscigenada, diferente das de Estados Unidos ou Europa, por exemplo. A Anvisa precisa analisar os testes feitos no exterior para ver se um produto é compatível com os brasileiros. É por isso também que os americanos e europeus não aceitam automaticamente aprovações de outras agências", afirma Mussolini.
Peternelli não concorda com estes argumentos. "Hoje, Paris tem uma multiplicidade de pessoas e culturas enorme. Os próprios Estados Unidos têm uma grande miscigenação. Nova York é uma ONU", afirma o deputado.
"Dizem que aqui é quente, mas em Paris está fazendo 43 graus. Lá está mais tropical que aqui. Já imaginou dizer que um medicamento só serve onde fizer frio ou que só serve na Amazônia porque lá tem uma umidade diferente do Rio Grande do Sul? Imagina dizer para a mãe de um menino com doença rara que um remédio não é bom por causa das condições climáticas?"
Barbano afirma que a preocupação do Congresso é "nobre", mas avalia que a aprovação automática de medicamentos impediria a Anvisa e seus técnicos de terem conhecimento dos estudos de tecnologias de ponta ou colaborar com outras agências do mundo.
"Um projeto de lei assim vai esvaziar a competência técnica da agência de fazer análises e sua capacidade de contribuir com outros países, como já aconteceu com a aprovação de medicamentos lá fora em que avalições da Anvisa balizaram a decisão", afirma o ex-presidente da agência.
Isso fragilizaria a Anvisa, afirma Barbano. "Vai passar a ser vista como uma agência de natureza secundária, que não participa das decisões do mercado farmacêutico, só as absorve."
Ele afirma ainda que no passado parlamentares tomaram decisões "irresponsáveis". Cita como exemplo a lei que liberou em 2016 a prescrição da chamada "pílula do câncer", sem que testes clínicos atestassem sua eficácia, e que depois foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.
"Misturar decisões de natureza técnica e científica com política fragiliza e gera incertezas no setor, e isso é péssimo."
No entanto, o presidente da Anvisa diz que está aberto a debater as questões levantadas pelo Congresso e pelo governo. "É uma discussão importante. Não há empecilhos por parte da agência em pensar formas de oferecer um serviço melhor à população. Mas todo mundo precisa ser ouvido. O Ministério da Saúde, a indústria, a Anvisa. Todos precisam ter um lugar à mesa", afirma Dib.
Ele diz que críticas "fazem parte" do trabalho exercido pelo órgão. "A Anvisa tem um papel fundamental na qualidade da saúde do país, mas a gente regula cerca de 28% do PIB do país. Então, é obvio que há muitos interesses envolvidos em uma agência que atua em tantas frentes."
Mas Dib afirma que muito disso também é fruto de desconhecimento sobre a função do órgão. "As agências são muito recentes na história do país. Acho que todas elas estão na mira de todo mundo. O papel da Anvisa - que é proteger a sociedade - é muito mal entendido pelo governo, pelo Congresso, pela população. Mas uma hora a ficha cai, uma hora eles entendem."
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