Não custa nada a quem faz e pode beneficiar até quatro pessoas. Ainda assim, a doação de sangue não é uma prática consolidada na cultura brasileira e todos os anos, nesta mesma época, os estoques dos hemocentros costumam baixar em função do inverno, das férias escolares e dos diversos feriados do calendário nacional.
Dados de 2017 do Ministério da Saúde dão conta de que apenas 1,8% da população brasileira doa sangue, número que está dentro dos parâmetros – de pelo menos 1% de doadores no País – mas está longe da meta estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 3% da população se configurar como doadora.
Como forma de conscientizar sobre a necessidade da doação e agradecer às pessoas que se voluntariam, o dia 14 de junho foi, portanto, instituído como Dia Mundial do Doador de Sangue e o mês, que também é lembrado no Brasil pelas festas de São João e Santo Antônio, passou a ser conhecido como “Junho Vermelho”, em prol da sensibilização de novos voluntários e da fidelização de doadores ocasionais.
O sangue é um insumo que não possui substituto e seu uso é essencial em procedimentos médico-hospitalares como cirurgias, tratamentos de doenças crônicas graves e intervenções de urgência e emergência. Para se ter uma ideia da importância do gesto de doar, por ano no Brasil, aproximadamente 3,5 milhões de transfusões de sangue são realizadas graças ao serviço dos 27 hemocentros existentes e suas 500 unidades de coleta.
Em referência ao tema, esta edição da Entrevista do Mês traz o médico hematologista Daniel Salas Steinbaum, que é chefe da Unidade de Hematologia/Oncologia do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (HU-UFGD) e atua na instituição há seis anos.
Especialista em Hematologia e Hemoterapia pelo Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, o médico alerta para a importância das doações voluntárias e para o trabalho de conscientização feito por profissionais de saúde junto a familiares e amigos de pacientes, cultura que incentiva o surgimento de novos doadores.
A baixa em estoques de bancos de sangue pode desestabilizar toda a cadeia de atendimentos de uma unidade de saúde que atua com cirurgias e outros procedimentos, como quimioterapia. Qual é a relevância da doação de sangue para as rotinas hospitalares? Em que situações o sangue doado é empregado?
Daniel – A falta de sangue é uma preocupação constante do Hemocentro de Dourados, órgão responsável pela coleta de sangue dos doadores, produção dos hemocomponentes e pela distribuição à rede hospitalar pública e privada da macrorregião de Dourados. A transfusão de sangue é uma modalidade terapêutica que salva vidas. Os principais hemocomponentes utilizados na prática clínica são o concentrado de hemácias, o concentrado de plaquetas, o plasma fresco congelado e o crioprecipitado. Cada um deles é indicado pelo médico em situações específicas. Por exemplo, em casos de anemia severa ou hemorragia intensa, pode ser necessário o emprego de concentrado de hemácias, e para correção de determinados distúrbios de coagulação utiliza-se o concentrado de plaquetas, o plasma fresco congelado e o crioprecipitado. O estoque dos hemocomponentes, no entanto, depende do número de doadores. Por esse motivo, as campanhas para conscientização da população são importantes, para que se mantenha um fluxo contínuo de fornecimento para os hospitais da região. A falta de sangue no estoque é uma situação crítica, que pode comprometer toda a rotina hospitalar. Os principais setores a serem afetados são o atendimento de urgências e emergências, as unidades de terapia intensiva, a obstetrícia e as cirurgias eletivas.
Quem está apto a doar? Existem doenças, procedimentos ou condições físicas que impedem que uma pessoa seja doadora?
Daniel – Todos os indivíduos com idade entre 16 e 70 anos e com peso acima de 50 quilos são potencias doadores. Existem critérios estabelecidos pela legislação brasileira para seleção de doadores, que têm como objetivo garantir a segurança do doador e do receptor. Por exemplo, os doadores precisam estar com boa saúde no momento da doação. Já determinadas condições podem levar ao impedimento temporário ou definitivo da doação de sangue. Pode-se citar como fatores de impedimento temporário a presença de quadro febril, o uso de ácido acetilsalicílico (AAS) e antibióticos, a gestação, o consumo de álcool nas últimas 12 horas e as relações sexuais ocasionais desprotegidas. Por sua vez, doenças virais como hepatites, insuficiência renal crônica e doenças cardíacas graves são causa de impedimento definitivo. Deve-se lembrar, ainda, que alguns procedimentos levam à inaptidão temporária para doação, como implante de piercing, tatuagens e maquiagem definitiva.
Muitas pessoas acreditam que a quantidade de sangue doada pode fazer falta em seu organismo e optam em não se tornarem doadoras. Essa preocupação representa um perigo real ou trata-se de um mito? Quanto sangue pode ser retirado de um doador? E em quanto tempo o sangue retirado é reposto pelo organismo?
Daniel – O sangue retirado em uma doação não fará falta ao doador. O volume obtido na transfusão é calculado para que não seja prejudicial a quem doa (9 ml/kg para homens e 8 ml/kg para mulheres). O volume retirado e os elementos do sangue são rapidamente repostos pelo organismo saudável, não apresentando risco ao doador.
Atualmente, as transfusões não são feitas com o sangue em sua totalidade, sendo usados apenas os componentes sanguíneos necessários para cada paciente. Após a coleta, como o sangue é processado para que seja utilizado nos procedimentos assistenciais? Que tipos de testes são realizados? E que componentes são extraídos do sangue doado?
Daniel – No ato da doação o sangue é coletado em uma bolsa plástica específica para hemoterapia, o que denomina-se “sangue total”. A partir desta unidade, o hemocentro realiza o fracionamento obtendo os quatro hemocomponentes mais utilizados na prática clínica, como citado anteriormente: concentrado de hemácias, concentrado de plaquetas, plasma fresco congelado e crioprecitado. Determinados hemocentros possuem um equipamento capaz de coletar especificamente hemácias ou plaquetas, o que é denominado de coleta por aférese. Em prol da qualidade do sangue doado, os serviços de hemoterapia realizam em todos os hemocomponentes obtidos a triagem para doenças infecciosas. São obrigatórios os testes para HIV, hepatite B, hepatite C, chagas, HTLV e sífilis. E no momento que precede a transfusão são feitos os testes de compatibilidade entre o doador e o receptor.
Geralmente, a primeira doação de uma pessoa está vinculada a algum parente ou conhecido que está doente e necessita de bolsas de sangue. Em outros casos, os testes laboratoriais são a motivação para a doação. Como mudar essa mentalidade e conscientizar a sociedade de que a doação voluntária é importante para a manutenção dos estoques nos níveis adequados?
Daniel – De acordo com a legislação brasileira “a doação de sangue deve ser voluntária, anônima e altruísta, não devendo o doador, de forma direta ou indireta, receber qualquer remuneração ou benefício em virtude da sua realização”. Por um lado, muitos doadores são motivados a procurar o hemocentro com objetivo de vincular a doação à um indivíduo específico. Esta modalidade de doação é denominada reposição de estoque, sendo as campanhas feitas pelos profissionais de saúde das áreas assistenciais muito importantes na conscientização de familiares e amigos de pacientes. Por outro lado, devem ser desencorajadas as doações de sangue com a finalidade de realizar testes sorológicos. As triagens para doenças transmissíveis pelo sangue são realizadas através da detecção de anticorpos específicos para cada agente infeccioso (testes sorológicos) ou pela detecção do material genético viral (ácido nucléico), denominado NAT. Para qualquer doença infecciosa é necessário um curto prazo para que os testes se tornem positivos, o que no caso dos testes sorológicos denomina-se janela imunológica. Pode-se citar como exemplo a infecção pelo HIV, que leva cerca de 22 dias para que seja detectável pela sorologia e aproximadamente oito dias pelo NAT. Ou seja, caso a pessoa exposta procure doar sangue antes deste período, os testes de triagem podem vir negativos implicando riscos ao receptor. Outra situação que deve ser considerada: os testes realizados em hemoterapia para detecção de agentes infecciosos transmissíveis por transfusão são destinados à triagem, ou seja, são calibrados para ter uma alta sensibilidade e, consequentemente, possuem maior chance de o resultado ser falso positivo (o resultado do teste é positivo sem o doador realmente ter a doença). Quando um teste de triagem apresentar-se positivo, deve-se buscar um laboratório de referência para realizar, então, os testes diagnósticos confirmatórios.
Serviço:
Em Dourados, o Hemocentro Regional fica na rua Waldomiro de Souza, 295, Vila Industrial, e funciona de segunda a sexta-feira, das 7h às 13h. Para doar, é necessário estar bem alimentado e comparecer ao hemocentro munido de documento oficial de identificação com foto. Para mais informações: (67) 3424-4192.
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