Saúde

Leite materno: a bebida mais valiosa do mundo

Amamentar faz bem — mais do que imaginávamos. Mas colocar a amamentação em prática é um desafio para muitas mulheres

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Todo mundo já ouviu falar dele e sabe que ele é o melhor alimento que um recém-nascido pode receber. Mas o que é exatamente o leite materno? A questão é menos simples do que parece. Sabe-se que grande parte do composto é água, especialmente no início da mamada. À medida que o bebê mama, o leite vai se tornando cada vez mais gorduroso. Mas, além de água e gordura, a receita leva vitaminas, açúcares, substâncias anti-inflamatórias, sais minerais, células-tronco, microRNA e muitos outros componentes sequer identificados. “Ainda estamos começando a entender o que ele contém”, afirma o epidemiologista Cesar Victora, um dos pesquisadores mais renomados do mundo sobre o tema da amamentação.

O mais impressionante é que a lista de ingredientes do leite pode mudar conforme o crescimento e a saúde da criança: se, por exemplo, ela tiver uma infecção, ele trará anticorpos e substâncias estimulantes do sistema imunológico. Novos estudos na área de epigenética investigam a capacidade de o leite influenciar até a forma como nossos genes efetivamente se expressam. Por isso, diante da pergunta “o que é o leite materno?”, os especialistas adotam o lema: é a medicina mais personalizada que existe.

Um dos grandes benefícios desse composto já pode ser constatado nos primeiros meses de vida do bebê: o aleitamento reduz o risco de mortalidade infantil. Foi Victora, professor emérito na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que liderou, na década de 1980, o primeiro estudo do mundo a mostrar que a amamentação exclusiva (sem chazinho, sem água) até os seis meses de idade reduz em 14 vezes o risco de morte por diarreia e em 3,6 vezes o risco de óbito por infecções respiratórias.

– (iStock/Reprodução)

Uma das explicações está no tamanho do estômago do bebê, que é muito pequeno. Se entram outros líquidos, perde-se espaço para o leite. Outra está justamente naquela composição mágica do leite da mãe, que não só fornece os nutrientes necessários ao crescimento da cria como tem substâncias capazes de protegê-la contra infecções. É o caso dos oligossacarídeos. Até pouco tempo atrás, não se entendia o porquê da presença desse açúcar no leite, já que ele não é absorvido pelo corpo do bebê. “Seu papel é atender as bactérias do microbioma, favorecendo o desenvolvimento de um tipo de flora essencial para um sistema intestinal saudável”, afirma Victora. Replicado em outras partes do mundo com resultados semelhantes, o estudo da UFPel levou a OMS a divulgar, em 1990, a Declaração de Innocenti, orientando o aleitamento exclusivo até os seis meses de idade.

Mas os benefícios do leite materno não se restringem à infância. Novos trabalhos mostram que o impacto da amamentação continua a ecoar ao longo da vida adulta, influenciando fatores como a tendência à obesidade, o QI, a escolaridade e até a renda. É o que mostrou uma pesquisa feita pela equipe de Pelotas, que acompanhou a saúde de todas as crianças nascidas em 1982, 1993 e 2004 na cidade gaúcha.

Comparando bebês que mamaram por menos de um mês com os que mamaram durante um ano, os que mais mamaram tiveram, aos 30 anos, quatro pontos a mais no score de QI, quase um ano a mais de escolaridade e uma diferença de renda de cerca de R$ 340. O estudo isolou dez variáveis sociais e biológicas (como escolaridade e renda dos pais, tipo de parto, tabagismo materno, entre outras) para garantir o rigor da análise e definir exatamente o papel do leite materno nesse contexto. O resultado foi publicado em 2015 pela revista científica The Lancet.

A ciência vem mostrando que a amamentação é benéfica também para as mães, que ficam mais protegidas contra o câncer de ovário e de mama. A cada ano que a mulher amamenta, o risco de que venha a desenvolver câncer de mama cai 6%. Segundo o American Institute for Cancer Research, isso ocorre porque a lactação induz um padrão hormonal único associado a um período de amenorreia (ausência de menstruação), o que reduz a exposição da mulher a variações hormonais associadas a esse tipo de tumor.

Além disso, amamentar ajuda a recuperar o peso pré-gestação e também facilita a superação da depressão pós-parto, afirma a pediatra Honorina de Almeida. Conhecida como dra. Nina, ela é uma das fundadoras da Casa Curumim, espaço especializado em aleitamento materno em São Paulo, que presta atendimento a famílias que precisam de um suporte extra para viabilizar a amamentação.

Mas, se amamentar é algo natural, por que as mulheres sofrem tanto com esse processo, chegando a buscar auxílio? E, se é de graça e traz tantos benefícios, por que menos de 40% dos bebês de países em desenvolvimento recebem aleitamento exclusivo até os seis meses? No Brasil, segundo a II Pesquisa de Prevalência do Aleitamento Materno nas Capitais Brasileiras e DF, de 2009, o tempo médio de aleitamento exclusivo é de 54,1 dias — menos de dois meses.

Fonte: Ministério da Saúde

“Para responder a essas questões é preciso resgatar uma série de mudanças sociais ocorridas ao longo da história da humanidade”, afirma o pediatra Roberto Issler, membro do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria. Em comunidades primitivas, a experiência da maternidade era vivenciada de forma coletiva, e não tão individualmente como ocorre hoje. Dessa forma, a comunidade amparava a nova mãe e passava para ela conhecimentos sobre o ato de amamentar. Adotava-se rotineiramente o leite compartilhado, que comprovadamente ajuda no sucesso da amamentação (embora seja um tanto polêmico por conta do risco que oferece à segurança do bebê). Além disso, a taxa de fecundidade era muito mais elevada: a cada filho que nascia, a mulher acumulava experiência.

Décadas atrás, vários desses elementos ainda davam o tom da vida familiar no Brasil. Em 1960, 55% da população era rural e cada casal tinha em média seis filhos, segundo dados do IBGE. Em 2015, 85% dos brasileiros viviam em áreas urbanas e a taxa de fecundidade era de menos de dois filhos por casal. E caindo. Ou seja, é bem provável que a mulher que se torna mãe hoje não tenha convivido com outras lactantes, não conte com o suporte direto de outras mulheres da família e viva a experiência da amamentação apenas uma vez em toda a vida. Isso sem falar que muitas delas precisam voltar ao mercado de trabalho quatro meses após o parto.

“Nesse contexto, o profissional de saúde acaba se tornando a principal, senão única, fonte de informação e apoio para a lactante”, comenta Issler, citando a importância da Iniciativa Hospital Amigo da Criança. Criada em 1990 pela OMS e pela Unicef, ela estabelece dez medidas fundamentais para a promoção do aleitamento materno e conta, atualmente, com mais de 300 hospitais habilitados no Brasil. “Quando eu estava na faculdade de medicina, não se dava importância a informações que hoje são consideradas básicas para o sucesso da amamentação”, lembra Cesar Victora.

Também relevante e preocupante é a relação do profissional de saúde com a indústria alimentícia. “Existe muita pressão sobre os pediatras, que recebem patrocínios de viagens, congressos, conferências. Embora os médicos não admitam, há, sim, uma influência perniciosa que não pode ser ignorada”, alerta o pesquisador. Estamos falando aqui de um mercado bilionário: no ano 2000, as vendas globais de fórmulas substitutas do leite materno totalizavam US$ 18,6 bilhões. Em 2014, esse número chegava a US$ 44,8 bilhões. O valor projetado para o ano de 2019 é de — atenção — US$ 70,6 bilhões.

A percepção da fórmula como uma opção moderna, um sinal de prestígio para mulheres urbanas (em oposição à amamentação, vista como uma prática pouco sofisticada ligada às camadas mais pobres da população), é um dos fatores que levaram à desvalorização do aleitamento materno ao longo do século 20. Foi uma escolha direcionada pelo estilo de vida, e não pela saúde.

O fato é que quem resiste e insiste em amamentar o rebento enfrenta problemas práticos, físicos, habitualmente desafiadores e raramente esperados. “Uma das grandes dificuldades do início da amamentação diz respeito à pega do bebê. As mães acham que é normal sentir dor e demoram muito a buscar apoio”, afirma a pediatra Honorina de Almeida. O que é uma boa pega? Aquela em que o bebê abre bem a boca e coloca a língua para fora, de modo a abocanhar grande parte da aréola. Quando o recém-nascido persiste em uma pega errada, acaba machucando a mãe e não consegue retirar o leite que precisa. Irritado e faminto, não desgruda do peito, ferindo ainda mais os mamilos. E assim se inicia um círculo torturante para o bebê e, especialmente, para a mãe.

O uso de chupeta e mamadeira também pode tornar essa fase mais difícil, afirma Honorina. “Todos os estudos mostram que o risco de o bebê desmamar é muito maior se ele usa chupeta e mamadeira. Isso porque, para mamar, ele precisa jogar a língua para fora, abrir a boca e usar todos os músculos da face para ordenhar a mama. Para sugar a mamadeira, o movimento é oposto: ele coloca a língua para trás e fecha um pouco a boca, usando apenas os músculos ao redor da boca. Muitos bebês confundem esses dois movimentos.” A chupeta induz ao mesmo movimento da mamadeira e ainda pode atrapalhar a ingestão de leite — o choro que se acalma com a chupeta pode ser um sinal de fome que vai passar despercebido. Esses fatores, muitas vezes, comprometem o ganho de peso nas primeiras semanas de vida, aumentando o risco de prescrição médica de fórmula.

Existem, sim, casos excepcionais, em que o aleitamento é prejudicado por motivos fisiológicos. É o caso de mulheres com hipogalactia (dificuldade para produzir leite) ou que passaram por cirurgias para a redução das mamas.

Um estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul com 49 mulheres submetidas à mamoplastia redutora mostrou que, um mês após o parto, elas tinham um risco nove vezes maior de não praticar amamentação exclusiva do que as mulheres do grupo-controle (que não haviam passado por esse procedimento). Quatro meses após o parto, elas tinham dez vezes mais chance de ter interrompido a amamentação. Em casos assim, é necessário usar todos os recursos possíveis para alimentar adequadamente o bebê — e que bom que existem alternativas. Mas essas estratégias demandam uma avaliação personalizada e especializada.

O desconforto no início do aleitamento pode estar relacionado ao posicionamento do bebê durante a mamada

 

Fontes: SBP e Ministério da Saúde

Se todos os obstáculos foram vencidos, a próxima questão pode ser: quando desmamar? A OMS recomenda que o aleitamento prossiga até a criança completar 2 anos de idade. Mas por que, uma vez que a essa altura a criança já fala, corre, tem dentes e come toda a variedade de alimentos? “É um erro pensar no leite materno como uma mera comida”, afirma Cesar Victora. “Ele é uma substância viva, que atua em diversos sistemas do nosso organismo.” Naquele estudo que investigou a relação do leite materno com QI, escolaridade e renda, ele observou que, quanto maior a duração da amamentação, melhores os resultados obtidos.

E isso faz sentido se nos compararmos com outras espécies de mamíferos. A antropóloga americana Katherine Dettwyler traçou um paralelo com base em diversas variáveis na vida de primatas, tais como duração da gestação, da infância (do nascimento até a erupção do primeiro dente permanente) e da fase juvenil (até a erupção do último dente permanente), idade da fêmea na primeira menstruação etc. Também comparou a fase do desmame com aspectos como o peso da mãe e o do filhote (já foi observado entre primatas que o desmame ocorre quando a cria atinge aproximadamente 1/3 do peso adulto).

Sua conclusão é que, do ponto de vista biológico, o desmame natural do ser humano deveria ocorrer a partir de 2,5 anos de idade. A idade máxima para o desmame de humanos, ainda de acordo com o padrão observado entre outros primatas, seria 7 anos — quando a chegada dos dentes permanentes facilitaria a trituração de alimentos. O que faz com que bebês sejam amamentados por poucos meses em várias sociedades, segundo Dettwyler, é o aspecto cultural — incluindo aí a percepção dos seios como objeto sexual — e a vida profissional da mulher, que é difícil de conciliar com amamentação, especialmente nos primeiros meses.

É claro que não vivemos mais na selva: o contexto sociocultural e econômico não pode ser ignorado, e isso inclui reconhecer mudanças no padrão reprodutivo, na estrutura familiar, na alimentação, no mercado de trabalho. Por isso, não há uma resposta definitiva para o momento do desmame. Uma coisa, no entanto, parece certa: não há por que se preocupar com o risco de dependência emocional relacionada à amamentação. “Quem trabalha com desenvolvimento infantil sabe que isso não é um problema”, diz Issler. “Mas o pediatra deve ir além e investigar também a qualidade da vida conjugal, o apetite da criança, a disposição e vida social da mãe.”

Entendidos os benefícios da amamentação, há de se procurar um meio-termo entre a saúde do bebê e o bem-estar físico e emocional da mãe, já que o aleitamento exige muito da mulher. O que se espera é que ela tenha dados e espaço para fazer suas próprias escolhas. “A amamentação é um direito da mulher, não uma obrigação”, conclui Issler. ”

 

Fontes: SBP e Ministério da Saúde

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