“Dá para tirar todo o meu cabelo e colocar um cabelo loiro?”, pergunta menina negra de 3 anos a mãe
No final do mês passado, a roteirista Priscila Guerra, que mora em Porto Alegre (RS), usou o Facebook para escrever um texto-desabafo em que expõe sua dor ao acompanhar, como mãe branca, o racismo sofrido pela filha negra, Júlia, 3 anos. O post teve mais de 2.500 compartilhamentos, mais de 9 mil reações e mil comentários - muitos deles, contendo depoimentos tão fortes e reveladores quanto o original.
Confira o depoimento a seguir, e nossa conversa com a autora do relato mais adiante. Ela conta como a experiência levou a pequena a conhecer o trabalho de Mc Elis, com quem passou a se identificar.
“Júlia completou 3 anos em março. Eu sempre imaginei que em algum momento ela enfrentaria algum sofrimento por ser uma menina negra em uma família branca em uma sociedade tão racista. Só não pensei que seria tão cedo.
No banho, enquanto eu calmamente desembaraçava os cabelos dela com os dedos e comentava o quanto gostava de fazer aquilo, ela me perguntou:
- Mãe, eu sou loira?
- Não, filha.
- E tu?
- Também não.
A conversa continuou e me ocorreu que talvez ela não soubesse o que significava cabelo loiro. Perguntei. Ela respondeu: é o cabelo brilhante.
A essa altura meu coração de mãe já estava acelerado. Acelerado de medo - eu não estou preparada pra isso. De culpa - eu não ofereço referências adequadas pra ela. De raiva - o que aconteceu pra gerar essa conversa? Mas era só o começo. Eu respirei fundo e segui.
- O teu cabelo brilha, filha. O meu cabelo brilha. Mas nós não somos loiras. Loiras são as pessoas que tem o cabelo amarelo.
- Dá pra tirar todo o meu cabelo e colocar um cabelo loiro?
Meu coração só não parou de bater naquele instante, porque eu precisei de horas repassando a conversa na minha cabeça pra acreditar que era verdade. E pra juntar todas as peças de um quebra-cabeça formado por várias pequenas conversas desconexas e finalmente entender que ela já tem problemas de aceitação por conta do racismo que sofre.
Tenho certeza que nenhuma pessoa negra que ouvisse minha filha falando demoraria tanto tempo pra entender. A Júlia já tinha me perguntado, dias atrás, se eu podia alisar o cabelo dela e eu tinha pensado "não, ela não falou isso". Ou, no máximo: "ela vê meu cabelo e quer igual". Porque, nós, pessoas brancas legais, simplesmente fingimos que racismo não existe.
A Júlia não sabia o que era cabelo loiro, mas entendeu que era legal. Eu sempre entendi que racismo era uma merda, mas a verdade é que eu não fazia a menor ideia do que realmente era.
Eu não fazia ideia de como ela seria olhada cada vez que vai a um shopping. Nem de que ela seria assediada em tantas festas de aniversário. De que uma turista estrangeira pediria pra tirar fotos com ela na praia, como se fosse um ser exótico. Eu até já tinha pensado sobre isso, mas não imaginava qual seria a sensação de entrar em uma loja de brinquedos com minha filha negra e encontrar uma parede inteira, enorme, repleta de bonecas brancas - e arrastá-la pro outro lado da loja, tentando impedi-la de ver. Eu não fazia a menor ideia da raiva que eu sentiria dos programas infantis e de sua quase totalidade de personagens brancos. E de como eu procuraria desesperadamente personagens com cabelo afro - pra finalmente sentir (porque sentir é muito mais do que entender) como representatividade importa. Eu não fazia a menor ideia de que as outras crianças - crianças desconhecidas, em locais públicos - iriam querer tocar no cabelo dela o tempo todo, mesmo com ela demonstrando desconforto, e de que tão cedo ela teria que aprender a impôr limites. E passava a anos-luz de mim a ideia de que alguma criança não iria querer brincar com ela por ser negra.
Eu, na minha fantasia de mãe - e de mulher branca, eu sei - acreditava que eu encheria o reservatório de amor da minha filha até transbordar e com isso eu a protegeria. Eu pensei que ela se olharia no espelho e veria o que eu vejo: a menina mais linda, inteligente e divertida que eu conheço. Mas o mundo passa o tempo todo dizendo a ela o contrário. Que força uma mãe e um pai tem diante de todo o resto?
Faz dois dias que eu penso e choro. Abraço a Ju bem apertado, querendo tirar a dor dela e trazer pra mim. Mas não é sobre mim. Porque eu nunca vou ser alvo daquele olhar. Eu dificilmente vou ser a única pessoa da minha cor em uma festa. Eu nunca vou prender meu cabelo querendo soltá-lo e eu jamais fiquei de fora de uma brincadeira por causa da cor da minha pele. A minha dor é imensa. Eu sinto uma raiva que eu não conhecia, uma sensação de impotência misturada a uma urgência de mudar o mundo. Mas a dor que a Júlia sente eu nunca saberei como é.
Eu tento ensinar meus filhos a serem gentis. Mas finalmente entendo que preciso ensinar minha filha a ser forte. Júlia é mulher. É negra. E o mundo não é nada gentil com mulheres negras.”
Priscila, Kiko, Henrique e a sua nova irmã, Júlia, em foto de 2015 (Foto: Reprodução Facebook)
Júlia foi adotada com 24 dias de vida por vias legais. Priscila e o marido Kiko Ferraz já tinham Henrique, hoje com 6 anos. A partir do episódio, ela passou a conversar mais com Júlia e chegou ao trabalho de Elis Mc, a rapper mirim carioca, nota 10 no passinho, que valoriza a autoestima das crianças negras. Notou que a filha passou a se identificar mais com os personagens negros em livros e vídeos. “Antes, Júlia achava que, na história, ela era a personagem loira”, conta a mãe por telefone a CRESCER. “Há uma questão de falta de representatividade importante. O cabelo dela ainda chama a atenção das crianças; elas pedem para tocá-lo. Compreendi a partir dessa experiência o que é o racismo estrutural, que é naturalizado, que faz com que a gente ache normal a Júlia ser a única menina negra em tantas situações, e também o que estabelece os nossos padrões de beleza”, diz.
O desabafo não parou por aí. Nos comentários do post há uma variedade de depoimentos que dão a dimensão da questão racial na infância das meninas negras. Priscila conta que agora se sente motivada a tentar transformar a maneira como as pessoas brancas enxergam o racismo. “A responsabilidade de resolver esse tipo de problema não pode ser das crianças negras”, afirma. “Em várias circunstâncias, quando a gente falava para amigos e familiares de alguns episódios racistas que aconteciam com a Júlia, a tendência era minimizar o problema. ‘Será que não é da idade? Todas as crianças passam por isso! Será que não está na sua cabeça?’, diziam. O objetivo do texto era fazer uma reflexão sobre essa reação”, finaliza.
Assista abaixo ao clipe de Elis Mc, Vem dançar comigo, que tem versos como “eu já tô incomodada / com essa ideia de racismo / eu não tô de mimimi / fale o que quiser nem ligo / meu cabelo não é duro / ele é crespo e muito lindo”.
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