Há quem diga que foi só humor – homens brasileiros gritando palavras ofensivas ao redor de uma mulher russa. Diziam coisas que ela desconhecia e as frases não foram engraçadinhas. Todas são exemplos do assédio escondido e cotidiano que as mulheres sofrem e alguns homens ignoram ser violência. Não repetirei as frases nem as imagens, é fácil encontrá-las em uma busca rápida na rede para os que precisam ver e ouvir para crer.
O caso me surpreendeu: pela desfaçatez do bando em gritar e filmar, em filmar e compartilhar, em ser descoberto e se explicar de maneira desconcertante. Um deles chegou a sugerir que as mesmas imagens não causariam surpresa se fossem feitas na favela do Rio de Janeiro no carnaval. Não, está tudo muito errado, neles e em quem saiu em defesa deles, sugerindo serem “só homens se divertindo na Copa do Mundo”.
Por que a diversão passaria pela humilhação de uma mulher? Ela não sabia o que eles gritavam, sorria ingênua como se o bando estivesse só feliz por ali. Se ela não foi vítima da violência masculina, o sentido da palavra desapareceu do léxico e da moral. Para quem ainda não se convenceu de que a cena é brutal, basta imaginar se seria possível gritar em português as mesmas frases para uma mulher brasileira e a cena não nos causar estranhamento. É simples o exercício.
Importa entender por que esses homens sentiram ser aquela uma cena alegre. São homens da elite, não há dúvidas – brancos, jovens e com dinheiro para acompanhar jogos do outro lado do mundo. O machismo sem fronteiras que os acompanha nas formas de relacionamento com as mulheres se viu fortalecido por se transformarem em turistas: em terra distante, o interdito da casa passou a ser autorizado na rua. E mais ainda: aquela é a mulher desejada no cenário racista do Brasil, a modelo das passarelas e das novelas.
A principal evidência que o bando não estranhou o machismo sem fronteiras foi o souvenir da viagem. Ao filmarem o assédio coletivo e terem compartilhado com muitos ou alguns amigos, não importa aqui para quem ou como o vídeo foi enviado, o grupo não estranhou suas práticas – eram machos em torno de uma presa. Precisavam mostrar suas conquistas a outros do bando, os menos afortunados por não estarem também entre a bebida, o futebol e a caça de mulheres. É verdade que é uma masculinidade ferida pelo 7 a 1 da copa no Brasil, o que pode ter potencializado a fúria do bando contra as mulheres.
A cena não representa a masculinidade brasileira, mas uma expressão persistente dela e, infelizmente, hegemônica. É o machismo que resiste em descrever a cena como de assédio sexual e a devolve como “brincadeira de meninos”. Não é. É como se olhássemos pelo buraco da fechadura e víssemos um instantâneo do que sofrem as mulheres quando saem às ruas, quando se vestem e são acusadas de facilitarem a violência, quando simplesmente existem em seus países e turistas a transformam em uma boneca sorridente para o gozo sem fronteiras.
Débora Diniz é antropóloga, professora da UNB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética. Em 2017, ganhou o prêmio Jabuti pelo livro "Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global". Como documentarista, seus filmes já ganharam mais de 50 prêmios. Sua área de interesse são os direitos das mulheres.
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